Assisti ao reality show produzido numa clínica de tratamento para anorexia dos Estados Unidos. A diretoria permitiu a filmagem e a transmissão. Ao que parece, as mães das garotas assinaram embaixo. Afora o conhecimento que adquiri, no tocante aos desafios que essas meninas enfrentam diante de um prato de comida, constatei que chegamos ao fundo do poço, no que diz respeito à falta de ética.
O vídeo não mostra apenas a evidente incapacidade dos profissionais em resolver os problemas das “doentes” — seus métodos são absolutamente cretinos e ineficazes. Apresenta também meninas burlando as regras para fumar escondido; meninas vomitando logo após o almoço — o vômito escuro literalmente jorrando no vaso sanitário; meninas desesperadas chorando porque não conseguem levar um papo decente com as mães, e muito menos com as psicólogas da clínica.
Talvez a humanidade necessite de conhecimentos cada vez mais profundos sobre as múltiplas questões que a abalam. Mas será correto levar todo aquele sofrimento ao público, da forma mais crua que se possa imaginar? Será humano expor as tramas de uma garota que atenta contra a dignidade de suas colegas (segundo o julgamento da diretoria, que decidiu por sua expulsão da clínica)? Depois que psicólogas formadas nas melhores universidades dos Estados Unidos disseram na TV que ela é imoral, como essa menina poderá alcançar a compreensão do público? Talvez as suas virtudes sejam muito superiores aos seus “pecados” — como ocorre normalmente com a criatura chamada Pessoa — mas as câmeras mostraram somente o lado negro da guria. Quando ela for procurar emprego, ou quando precisar de um empréstimo para montar sua empresa, ou quando estiver simplesmente tentando se afirmar num grupo de amigos, como poderá alegar honestidade?
Os produtores do vídeo sabem que as pessoas não resistem a uma câmera. Conseguiram a concessão das responsáveis pelas garotas com a promessa de que o documentário seria visto no mundo inteiro, e elas se tornariam estrelas! Ou talvez pagaram para cada mãe, cada psicóloga daquela clínica infernal. E faturaram horrores, como se pode supor. Quais garotinhas gordas ou magras, ou quais pais dessas garotas, não gostariam de entrar na intimidade da tal clínica para espiar o sofrimento daquelas pessoas? A proposta é irresistível para o olho gordo do patrocinador.
Quando se trata de reality shows, há também o aspecto da sensualidade. Faz parte do jogo sensual mostrar uma pontinha da pele, ou o corpo inteiro, para o público mundial. Não seria um problema realmente grave, se tais pessoas estivessem conscientes do que terão de enfrentar nos anos que virão. A exposição de seus corpos, e de sua incrível capacidade de transgredir regras, pode ser excitante agora, mas poderá se tornar algo extremamente constrangedor no decorrer dos anos.
Há segredos pessoais e profissionais que ninguém deveria saber, exceto os envolvidos. Tornar público a fraqueza de um profissional, antes que ele seja julgado e condenado por seu tribunal de classe, pode destruir sua carreira. Além do que, o vídeo é editado, o público só tem acesso às imagens que interessam aos editores como “produto de mídia”, e o espectador fica somente com um fragmento da tal realidade prometida, podendo cometer sérios erros de julgamento.
Publicar os segredos (safadezas, tramas, egoísmos, cicatrizes psicológicas) de um jovem antes que ele tenha a capacidade de avaliar as repercussões futuras, é um ato criminoso e repugnante. Pode-se argumentar que os expostos já são bem crescidinhos. Isso não é verdade. A maioria dos mortais se torna criança quando está diante de uma câmara de vídeo, ou quando vê a possibilidade de ganhar um milhão de reais e virar estrela.
O mais chato de tudo isso é que tais estrelas desaparecem tão logo se afastam do foco. De todas que se destacaram, não se vê nenhuma delas brilhando na atual constelação brasileira, por exemplo.
Vi a coisa perdida dois anos atrás, quando um amigo meu, dentista, cancelou um encontro com uma garota para poder assistir a uma coisa muito importante. “Hoje é dia de paredão”, justificou.
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