terça-feira, 30 de julho de 2013

CACA

O uísque foi abandonado, mas reservava-se o direito de revisitá-lo em alguns instantes especiais. O cigarro foi mais difícil. Era um vício tão pertinaz que livrar-se dele converteu-se no maior objetivo da vida do viciado. A agonia de dez anos chegou ao zênite no momento em que a filha de um cliente do jornal, vendo Rubens prestes a acender um cigarro, dirigiu-se a ele, tomou o objeto, deu uns passinhos mal equilibrados até a porta do escritório, atirou-o fora e disse “caca!”. Aquele foi um instante luminoso, que pedia uma atitude equivalente. Rubens já havia reduzido os vinte cigarros iniciais para quatro ou cinco ao dia, mas ainda sofria com dores de garganta, resfriados freqüentes, o fedor nas mãos, o amargo na boca e o pior, a certeza de que estava contribuindo para uma morte prematura. Sentia-se um fracasso rematado quando, nariz escorrendo, cabeça doendo, sem conseguir extrair sabor nenhum daquele cilindro maldito, acendia mais um, na inútil tentativa de perceber alguma essência redentora na névoa aromática. Tinha a certeza de que um buraco profundo se abriria à frente, perderia o chão se não fumasse o próximo. Mas quando a garotinha deu-lhe aquele sinal, pensou que havia urgência. Nos dias seguintes convenceu-se de que usava o cigarro para apaziguar o medo de errar na presença de outros, pois raramente fumava quando estava sozinho. Decidiu que, se fosse necessário, xingaria quem estivesse próximo, mesmo sem uma grande razão, desde que conseguisse se livrar daquele tormento. E obteve êxito, apesar de algumas mágoas que causou.
(Do livro "O Milagre da Lagoa das Lágrimas", inédito)

Nenhum comentário: