domingo, 2 de agosto de 2009

OS DENTES DE JULIANO

Era um boneco sensacional, vestido com o tradicional jaquetão vermelho, com cinta e botas pretas, luvas e sorriso brancos feito neve. Papai Noel cantava com voz de rádio mal sintonizado e rebolava meio desengonçado, naqueles primeiros tempos dos bagulhos importados do Paraguai. Mas para o pequeno Juliano era a coisa mais linda do mundo. Os dedinhos das mãos formigavam, ansiosos por tirar o velhinho da prateleira.

— Quanto custa, Roberval? — perguntou a um sujeito de cabelos ruivos, que naquele momento desmontava uma calculadora eletrônica com uma chave de fenda.

— Quatro cruzeiros. Você tem? — Dedo na boca, coceira na nuca, Juliano gostaria de dizer que sim. — Me traga os quatro cruzeiros e o Papai Noel é teu. Tome. Aperte o botão pra ele cantar.

O garoto não perdeu a oportunidade. Agarrou o boneco com sofreguidão, apertou o botão cravado nas costas e encostou a barriga do bom velhinho no ouvido para senti-lo resmungar uma velha canção de Natal americana.

Naquela noite sonhou com os sinos de Belém. A carruagem natalina espalhava estrelinhas no céu azulado, o velho de barbas longas distribuía presentes na cidade glacial, num país muito distante e pequeno.

Quando acordou, sentiu um estorvo na boca. Cuspiu longe, porém, vendo que brilhava, levantou da cama e foi ver o que era.

— Mãe, mãe! Caiu um dente — gritava, entrando disparado na cozinha. Mas a mãe não se encontrava. Só a Vovó Jurema. — Vovó, Vovó, veja, caiu um dente meu.

— Você já é um homenzinho — disse a avó, tomando o dente e analisando-o com seriedade e devolvendo-o ao menino. Estava sentada no caixão de lenha, ao lado do fogão, tecendo tricô. Tinha a estatura de uma menina, cabelos curtos e brancos mal enrolados num lenço de bolinhas. Estava recurvada sobre as agulhas compridas, que se trançavam com rapidez e precisão, enrolando fios brancos e vermelhos sob o olhar atento do menino.

— Vou propor um negócio pra você — continuou a velhinha, parando novamente com o tricote. — Você me dá o dentinho e eu te dou um cruzeiro. O que acha?

Com o assentimento de Juliano, sacou uma bolsinha velha de sua sacola de compras, retirou uma moeda e entregou ao neto. O menino saiu em disparada até “escritório” do Roberval, que naquela época morava numa pequena pensão do Limoeiro. O quarto estava sempre atulhado de bugigangas, que variavam entre vídeo-cassetes coreanos até bonequinhos de madeira da China. Além dos produtos importados, o quarto estava sempre cheio de garotos que, à moda de Juliano, tinham ali um ponto de encontro e de partida para as aventuras diárias.

— Eu trouxe um pouco do dinheiro — disse Juliano, logo que avistou o comerciante. — Posso levar o Papai Noel?

— Quanto você tem? Um cruzeiro? Mmm! Se prometer que me traz o resto até o final do mês, pode levar.

Juliano quase explodiu. Era dele! O Papai Noel! O fato de que tinha dinheiro na mão dispensava qualquer discussão sobre o valor da moeda. Embora quase estourasse de felicidade ao abraçar seu boneco, não estava nem um pouco surpreso com a generosidade do vendedor. Somente à noite, depois do severo alerta da mãe quanto ao perigo de “receber presentes de certas pessoas”, o garoto começou a matutar sobre os três cruzeiros restantes que teria de viabilizar nas próximas semanas. Chegou a pensar em vasculhar os bolsos dos pais, mas uma lição recebida pelo irmão mais velho há poucas semanas desmotivava qualquer ação desse naipe. Podia pedir emprestado a um amigo, mas quem, com sua idade, teria aquela montanha de dinheiro? Estava definitivamente em maus lençóis. Ainda assim, abraçado ao seu novo parceiro de cama, gastou quase toda a pilha e os nervos da família fazendo o boneco guinchar e bambolear madrugada adentro.

Na manhã seguinte, embora a mãe estivesse sentada à mesa, procurou o colo da avó, que naquele momento dava os últimos retoques a um luxuoso cachecol de lã.

— Caiu mais algum dentinho, querido?

— Não.

— Que boneco mais lindo. — A avó olhava ao mesmo tempo o menino e a mãe, que lhe dizia na linguagem labial: “Ganhou de presente de um tal de Roberval”. — Ganhou de presente? Nossa, eu seria a criança mais feliz do mundo se no meu tempo eu tivesse uma coisa dessas.

Juliano sorria, mostrando orgulhosamente o buraco deixado pelo incisivo desaparecido.

— Quer continuar o nosso negócio?

— Ahn?

— Cada dentinho que você me trouxer, te dou um cruzeiro. Você topa?

— Nossa, Vovó. Ta falando sério?

À noite um Juliano preocupado e endividado tinha uma ventania dentro da cabeça. Moedas, brinquedos, o rosto mal barbeado e misterioso do Roberval, tudo se misturava por dentro das pálpebras. Perturbado, pulou da cama e foi ao espelho do banheiro ver o buraco na dentadura. Fez algumas caretas, simulando algum monstro de história em quadrinhos. Assoprou pela fresta, cuspiu, tentou assobiar. Botou o mindinho entre os dentes restantes, para ver se passava pelo meio, mas o buraco não era tão grande quanto parecia. Notou que um dos dentes estava frouxo. Apertou mais um pouco e percebeu que ele cedia cada vez mais.

— Vovó — disse Juliano, no momento em que a velha colocava a chaleira no fogo para o café. Era sempre ela quem levantava mais cedo e preparava para todos o desjejum. Estranhou que o pequeno aparecesse àquela hora, mas recebeu-o como sempre num abraço caloroso.

— As pulgas te expulsaram da cama? — perguntou a velha.

Juliano riu, forçando para manter a boca fechada.

— Lembra, fofó, daquele negócio que você prometeu?

— Sei. Dos dentes. O que é que tem?

— Tão aqui fofó — exclamou o garoto, sorrindo com uma notável fresta onde deveriam estar os incisivos, enquanto abria a mão com as três pedrinhas brancas, ainda manchadas de sangue. — Agora focê me dá o dinheiro?

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