A legislação sobre o trabalho infantil segue
o mesmo padrão da que determina
a utilização da terra nos sertões do Brasil:
pessoas que jamais plantaram um pé de
milho, ou que jamais ergueram uma palha
do chão, definem o que é certo e errado
na vida de nossos filhos. Com muito
gosto, continuaremos desobedecendo.
Hoje vi a alma do meu pai, na paisagem colorida de primavera, a mata com pinheiros e palmeiras altas sobre um azul profundo. Se dissesse a ele, não sei se lembraria que um dia se viu nessas paisagens, naquelas tardes em que nos deslocávamos até as plantações de batata com tambores de água de 200 litros, motor de dois HPs sobre a picape Ford 1969, uma comprida mangueira e alguns pacotes demanzate, o agrotóxico antifungo da época. Algumas semanas após o plantio, já era um tapete verde da batata radosa, da delta ou da binje, salpicado de flores brancas e algumas roxas, de outras espécies que vieram junto nas caixas de sementes selecionadas compradas em Irati.
Estacionava a caminhonete debaixo de uma corticeira, descia da cabine, punha as mãos na cintura e, sorvendo o vento fresco da tarde, olhando na distância a paisagem de pinheiros e palmeiras altas, suspirava. No horizonte, além daquelas árvores perfeitas, estava o futuro, mas era preciso trabalhar duro para alcançá-lo, então ele abria dois pacotes do veneno, distribuía um em cada tambor e mexia com as próprias mãos, sem máscara, sem luvas, e com isso nunca pegou sequer uma gripe ou dor de barriga. Talvez estava protegido pela felicidade!
Descíamos a mangueira e estendíamos na direção das leiras. Na extremidade havia um cilindro de metal fino e comprido. Pegado à mangueira havia um cabo de madeira. Na outra ponta do cilindro, uma peça metálica formada por três auréolas, em cada uma destas um furo por onde passava o líquido em forma de vapor. Depois de estendida a mangueira, o pai apanhava uma pequena corda com um nó na ponta — a camisa arregaçada deixando à mostra os braços magros, musculosos e peludos — enrolava a corda a uma peça saliente do motor e dava um puxão para acioná-lo.
O barulho ecoava pelo vale, enquanto o lavrador corria apanhar seu instrumento de trabalho. Mal chegava àquele ponto, uma fumaça branca envolvia-o, enquanto ele caminhava apressado, fazendo movimentos em forma de oito em torno de si, procurando abranger todos os ramos das plantas. Enquanto ele passava de uma leira a outra, eu ia jogando a mangueira para lá e para cá, evitando que ela derrubasse os frágeis pés de batata.
Um mês depois, quando as folhas começavam a amarelar, lá íamos mexer a terra, ver o tamanho das bolotas que a Natureza nos proporcionara. Elas saíam contrastando com a terra marrom, aquelas formas amarelas, graúdas e arredondadas que enchiam de orgulho os olhos do plantador. Se o tempo fosse generoso, se o solo fosse bem adubado, havia ninhadas com mais de um quilo. Mais uma semana ou duas, os talos murchavam, as folhas secavam, e lá estávamos, meu pai no cabo do arado arrebentando as leiras e fazendo aflorar os tubérculos de ouro, enquanto eu e os camaradas seguíamos atrás com os balaios, juntando tudo e embalando nos sacos de estopa cor de palha, sempre com cheiro novo de polietileno.
Quando a safra era grande e o produto era abundante, só se vendia batata lavada. Meu pai enchia um tambor de água, acionava o pulverizador e me entregava a mangueira. Então apanhava as pelotas num balaio e ficava chacoalhando, enquanto eu, de pé numa cadeira, soltava o esguicho. Enchíamos dezenas de sacas com esse sistema.
Dias atrás vi na capa de um jornal de Guaçatunga/PR a fotografia de dois garotos sorridentes colhendo batatas. Senti saudades, e até uma ponta de inveja dos garotos. Mas o título da matéria era sinistro: “Trabalho infantil é explorado nas plantações de batata”. Fiquei pensando se não estamos sendo demasiado radicais, acreditando que qualquer atividade das crianças em benefício do patrimônio familiar é “exploração do trabalho infantil”.
Quando criança, eu adorava ajudar meu pai, mesmo quando fosse trabalho duro. Olhando no jornal de Guaçatunga aquela fotografia dos garotos sacrificados pelo trabalho infantil, nota-se que estão se divertindo e criando fibra, enquanto os “piás de prédio” passam o dia feito zumbis em frente à internet e vão ficando moles, bem ensinados de que todo trabalho é exploração. E quando os pais lhes pedem o favor de lavar pelo menos os tênis encardidos, retrucam: “Não sou teu escravo”!
A exploração do trabalho infantil deve ser condenada e punida, não há dúvida. O problema é que a legislação botou os pais e amigos das crianças no mesmo nível dos bandidos. Da mesma forma como já havia posto os destruidores de florestas no mesmo patamar dos trabalhadores que derrubam cem metros quadrados de mata para construir uma residência. Maltratar as crianças com trabalho é muito diferente de apresentar as nuances da vida através do trabalho, senhores deputados.
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