terça-feira, 29 de outubro de 2013

NIETZSCHE E BLACK BLOCK

Há mais de um século Nietzsche descreveu o homem institucional como um ser lamentável, amarrado nos múltiplos conceitos por ele mesmo criados. O homem havia criado suas próprias crenças. Mas as gerações sobrepuseram-se e não guardaram a memória dos fatos que induziram a essas crenças. O homem perdia tempo e energia vital enredando-se cada vez mais no emaranhado das histórias que contava-se como justificativas às suas mais absurdas atitudes. 
Aquele era um instante de luta verdadeira da humanidade consigo mesma, ou de Nietzsche contra a humanidade. E a humanidade já era, nessa época, um totem bem armado e protegido contra as investidas da Natureza. A Natureza sempre foi mestra pertinaz e eficiente, mas agora o homem só queria saber de ensinar a si e sobre si mesmo!
A vida de Nietzsche foi um período de desnudamento, em que se propunha um olhar novo sobre a sólida estrutura humana. O olhar da verdade destituído das paixões que nos açoitam e cegam. Porém a armadura dos conceitos, crenças, bordões, dogmas, vícios e toda a parafernália que os homens haviam inventado com o propósito de apresentar como heróica a aleatória façanha de estar vivos, era um impedimento concreto e poderoso contra o olhar límpido que o filósofo lhes lançava. Décadas afora, continuamos deslumbrados com a nossa impressionante capacidade de criar artifícios que enobrecem este curto período de passagem pela vida, e a vida verdadeira deixamos a cargo do homem do futuro.
Mesmo nos mais avançados centros de inteligência cultiva-se esse erro primário, que deveria ter sido reparado ao tempo de sua descoberta: o de que o homem é o ser que ele próprio instituiu; o de que nossas múltiplas máscaras são o retrato de um ser constantemente enganado; o de que jamais encontraremos transcendência no teatro diário, nas peças que nos pregamos continuamente com o objetivo de tornar válido perante a razão o corolário das nossas crenças.
Nietzsche foi tomado como um destruidor e alguns usufruíram com apetite o caldo grosso e denso de suas destruições. Mas poucos entenderam que se tratava da construção de uma nova e mais sólida estrutura mental, que poderia nos conduzir àquele estado de alma como um instante de grande ventura, a ventura de uma conquista: valeu a pena atravessar tantos mares turbulentos para vermos a humanidade livre, sim, livre e pronta para viver o seu apogeu!
Nietzsche poderia ter sido aquele necessário hormônio que nos faz passar da fase orgânica da adolescência para uma jovem maturidade. Poderíamos ter visto, um século atrás, que uma sociedade baseada em crendices e mentiras estava fadada ao fracasso. Porém, quando muito, seus contemporâneos e os acadêmicos de gerações futuras sentiram admiração ou inveja pelo talento do filósofo, que pela primeira vez mostrava qual era a verdadeira cor dos nossos ossos. Mas não houve um grande grupo de pessoas capaz de se reunir em torno dessa idéia, desse hormônio, num projeto de construção desse “homem novo”. 
O sintoma mais contundente do fracasso de Nietzsche — ao menos, até o presente instante — está no fato de que nos quatro cantos da Terra, seja nos lares, nas escolas, nas igrejas ou no mercado, continuamos executando o mesmo “programa”, cantando a mesma ladainha laudatória dos heróis, contando-nos as mesmas mentiras, promovendo as mesmas violações, exprimindo a mesma ignorância dos contemporâneos do filósofo. Somente porque ainda somos fracos e imaturos, mantemos um discurso de força e sucesso sobre as iniciativas que corroboram a nossa histórica angústia: o fracasso de nos vermos obrigados a continuamente buscar o que, a cada instante e lugar, é o dogma da atualidade, da modernidade e do sucesso.
Você não pode vencer uma batalha sem luta, mas a luta que temos ainda é pela glória, não pela verdade. O mundo é bruto e os propósitos são incertos. Não há entre os mercadores de idéias, entre os arautos da nova liberdade, senão instruções para manter o rebanho dentro do cercado. Dizem “sigam por aqui e por ali e encontrarão vales, rios e oásis”, porém não mencionam que além dos limites que alçamos existe um mundo completamente diverso, no qual os elementos que temos agora serão objeto de riso e piedade. Os filósofos do futuro haverão de nos ensinar a mansidão, antes que o frenesi, mas é possível que os da atualidade não saibam o que é isso!
Uma breve análise das nossas ações cotidianas mostra como nos tornamos um bando de animais loucos, porém pacificados dentro de cárceres sutis. Basta nos afastarmos umas poucas décadas rumo ao passado, e lançarmos um breve olhar sobre o nosso comportamento atual, e veremos o quanto somos capazes de nos adaptar ao conjunto de novas regras que nos ditam, por mais absurdas que sejam, mesmo aquelas que machucam os nossos mais profundos sentimentos.
Quando explodem revoltas na Europa ou nas ruas de São Paulo, dizemos, assombrados, que estamos assistindo a um bando de bandidos depredadores. Porém numa análise mais profunda estaremos vendo os braços de uma humanidade presa, humilhada, sufocada e agonizante tentando livrar-se das correntes, e isso nunca foi uma coisa boa de se ver. Por baixo da sólida armadura do homem conceitual, que se enfeita em brilhos, medalhas e troféus, está o homem natural, com seus músculos vermelhos, sangrentos e doloridos. Ele precisa sair, e sairá, ainda que o último portal se veja perdido no nevoeiro dos séculos.

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