quarta-feira, 26 de agosto de 2009
DICIONÁRIO DO JULIAN
terça-feira, 11 de agosto de 2009
OS ROMEIROS DA LAPA
Minha mãe foi visitar nossos primos na cidade da Lapa. Os filhos do tio Berto mudaram para a cidade histórica há aproximadamente 20 anos, depois que seu irmão Romildo entrou no exército e fez sucesso como corneteiro. Foram todos trabalhar na Da Granja, alguns como degoladores de frangos, outros como serventes e guardiões.
Quando mamãe chegou, fez alvoroço. Todos os sobrinhos estavam ansiosos pela visita, prometida havia mais de vinte anos.
Agadir, o primeiro visitado, era muito diferente do menino encrenqueiro que deixou Prudentopolis nos anos 70. Tornou-se um senhor respeitável, calejado pelo sofrimento. Ao sair da casa do Gade, minha mãe foi acompanhada pela família deste — o casal mais duas filhas muito bonitas e três colegas de escola — até a casa do Dinei. Mais conhecido como Bolinho na época em que morava em Prudentópolis, Dinei apaixonou-se pela Zula e casou cedo, contando hoje com três filhos adultos e vários netos, todos presentes para receber a irmã do Berto.
Saindo da casa do Dinei, minha mãe arrastou junto as duas famílias, e foram pelas ruas da Lapa visitar a Estelinha. “Até parece que ela remoçou depois que lhe morreu o Antonio”, segredou minha mãe ao Bolinho, que concordou com um gesto da cabeça.
Saindo da casa da Estelinha, seguida pelas três famílias pelas ruas da histórica Lapa, mamãe foi à casa da Araci, onde teve o prazer de conhecer todos os filhos da sobrinha mais velha, que saíram junto com ela e com os outros até a casa do Jurandir e sua numerosa família, e bastaram vinte minutos de animada conversa, lembranças e saudades de memoráveis momentos da época em que o Berto ainda era vivo, para que todos seguissem em romaria pelas ruas da Lapa, até a casa do Romildo, que infelizmente estava pescando no rio Iguaçu, mas nem por isso sua mulher e filhos deixaram de acompanhar os outros.
Saindo da casa do Roma, Dinei fez questão de apresentar minha mãe à família de seu amigo Divonzir, proprietário das Organizações Divo, que naquele momento estava sendo visitado pela família do Sidenei, e bastou alguns minutos para que todos os presentes aderissem à procissão puxada pela minha mãe pelas ruas da Lapa.
Tomados de curiosidade e impulsionados por não sei que instinto exploratório que desperta em todo aquele que se aventura longe de casa, os turistas que passeavam na cidade começaram a se juntar aos “romeiros”, e foram em animada conversa pelas vielas da Lapa. Em breve a multidão passou a ser seguida por inúmeros veículos, cujas placas e adereços denunciavam a origem distante, de outros estados e até de outros países.
As visitas aos sobrinhos estendeu-se pela tarde, e já se tornara impossível romper a grande massa de marchadores e carros que atravancavam as ruas, o que foi notado por uma patrulha de policiais militares. Sem saber do que se tratava, mas conscientes de que podia ser uma marcha de greve ou o início de uma revolução, os soldados solicitaram a presença de outras viaturas, e acompanharam atentos e solenemente minha mãe e todos os outros até a casa do Agadir, onde ela havia deixado sua velha Belina.
Logo que mamãe entrou no veículo e deu a partida, iniciou-se um alvoroço. Os seguidores correram em busca de seus automóveis, temerosos de perder o desfecho daquele inusitado passeio, que deveria findar no mais extraordinário dos pontos turísticos.
Saindo da Lapa, no entanto, minha mãe tomou o rumo de Curitiba, seguida por imenso comboio, que passou pela capital paranaense causando muito susto e tumulto e desaparecendo em seguida na BR 277.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
SULFATANDO BATATA
o mesmo padrão da que determina
a utilização da terra nos sertões do Brasil:
pessoas que jamais plantaram um pé de
milho, ou que jamais ergueram uma palha
do chão, definem o que é certo e errado
na vida de nossos filhos. Com muito
gosto, continuaremos desobedecendo.
Hoje vi a alma do meu pai, na paisagem colorida de primavera, a mata com pinheiros e palmeiras altas sobre um azul profundo. Se dissesse a ele, não sei se lembraria que um dia se viu nessas paisagens, naquelas tardes em que nos deslocávamos até as plantações de batata com tambores de água de 200 litros, motor de dois HPs sobre a picape Ford 1969, uma comprida mangueira e alguns pacotes demanzate, o agrotóxico antifungo da época. Algumas semanas após o plantio, já era um tapete verde da batata radosa, da delta ou da binje, salpicado de flores brancas e algumas roxas, de outras espécies que vieram junto nas caixas de sementes selecionadas compradas em Irati.
Estacionava a caminhonete debaixo de uma corticeira, descia da cabine, punha as mãos na cintura e, sorvendo o vento fresco da tarde, olhando na distância a paisagem de pinheiros e palmeiras altas, suspirava. No horizonte, além daquelas árvores perfeitas, estava o futuro, mas era preciso trabalhar duro para alcançá-lo, então ele abria dois pacotes do veneno, distribuía um em cada tambor e mexia com as próprias mãos, sem máscara, sem luvas, e com isso nunca pegou sequer uma gripe ou dor de barriga. Talvez estava protegido pela felicidade!
Descíamos a mangueira e estendíamos na direção das leiras. Na extremidade havia um cilindro de metal fino e comprido. Pegado à mangueira havia um cabo de madeira. Na outra ponta do cilindro, uma peça metálica formada por três auréolas, em cada uma destas um furo por onde passava o líquido em forma de vapor. Depois de estendida a mangueira, o pai apanhava uma pequena corda com um nó na ponta — a camisa arregaçada deixando à mostra os braços magros, musculosos e peludos — enrolava a corda a uma peça saliente do motor e dava um puxão para acioná-lo.
O barulho ecoava pelo vale, enquanto o lavrador corria apanhar seu instrumento de trabalho. Mal chegava àquele ponto, uma fumaça branca envolvia-o, enquanto ele caminhava apressado, fazendo movimentos em forma de oito em torno de si, procurando abranger todos os ramos das plantas. Enquanto ele passava de uma leira a outra, eu ia jogando a mangueira para lá e para cá, evitando que ela derrubasse os frágeis pés de batata.
Um mês depois, quando as folhas começavam a amarelar, lá íamos mexer a terra, ver o tamanho das bolotas que a Natureza nos proporcionara. Elas saíam contrastando com a terra marrom, aquelas formas amarelas, graúdas e arredondadas que enchiam de orgulho os olhos do plantador. Se o tempo fosse generoso, se o solo fosse bem adubado, havia ninhadas com mais de um quilo. Mais uma semana ou duas, os talos murchavam, as folhas secavam, e lá estávamos, meu pai no cabo do arado arrebentando as leiras e fazendo aflorar os tubérculos de ouro, enquanto eu e os camaradas seguíamos atrás com os balaios, juntando tudo e embalando nos sacos de estopa cor de palha, sempre com cheiro novo de polietileno.
Quando a safra era grande e o produto era abundante, só se vendia batata lavada. Meu pai enchia um tambor de água, acionava o pulverizador e me entregava a mangueira. Então apanhava as pelotas num balaio e ficava chacoalhando, enquanto eu, de pé numa cadeira, soltava o esguicho. Enchíamos dezenas de sacas com esse sistema.
Dias atrás vi na capa de um jornal de Guaçatunga/PR a fotografia de dois garotos sorridentes colhendo batatas. Senti saudades, e até uma ponta de inveja dos garotos. Mas o título da matéria era sinistro: “Trabalho infantil é explorado nas plantações de batata”. Fiquei pensando se não estamos sendo demasiado radicais, acreditando que qualquer atividade das crianças em benefício do patrimônio familiar é “exploração do trabalho infantil”.
Quando criança, eu adorava ajudar meu pai, mesmo quando fosse trabalho duro. Olhando no jornal de Guaçatunga aquela fotografia dos garotos sacrificados pelo trabalho infantil, nota-se que estão se divertindo e criando fibra, enquanto os “piás de prédio” passam o dia feito zumbis em frente à internet e vão ficando moles, bem ensinados de que todo trabalho é exploração. E quando os pais lhes pedem o favor de lavar pelo menos os tênis encardidos, retrucam: “Não sou teu escravo”!
A exploração do trabalho infantil deve ser condenada e punida, não há dúvida. O problema é que a legislação botou os pais e amigos das crianças no mesmo nível dos bandidos. Da mesma forma como já havia posto os destruidores de florestas no mesmo patamar dos trabalhadores que derrubam cem metros quadrados de mata para construir uma residência. Maltratar as crianças com trabalho é muito diferente de apresentar as nuances da vida através do trabalho, senhores deputados.
domingo, 2 de agosto de 2009
OS DENTES DE JULIANO
Era um boneco sensacional, vestido com o tradicional jaquetão vermelho, com cinta e botas pretas, luvas e sorriso brancos feito neve. Papai Noel cantava com voz de rádio mal sintonizado e rebolava meio desengonçado, naqueles primeiros tempos dos bagulhos importados do Paraguai. Mas para o pequeno Juliano era a coisa mais linda do mundo. Os dedinhos das mãos formigavam, ansiosos por tirar o velhinho da prateleira.
— Quanto custa, Roberval? — perguntou a um sujeito de cabelos ruivos, que naquele momento desmontava uma calculadora eletrônica com uma chave de fenda.
— Quatro cruzeiros. Você tem? — Dedo na boca, coceira na nuca, Juliano gostaria de dizer que sim. — Me traga os quatro cruzeiros e o Papai Noel é teu. Tome. Aperte o botão pra ele cantar.
O garoto não perdeu a oportunidade. Agarrou o boneco com sofreguidão, apertou o botão cravado nas costas e encostou a barriga do bom velhinho no ouvido para senti-lo resmungar uma velha canção de Natal americana.
Naquela noite sonhou com os sinos de Belém. A carruagem natalina espalhava estrelinhas no céu azulado, o velho de barbas longas distribuía presentes na cidade glacial, num país muito distante e pequeno.
Quando acordou, sentiu um estorvo na boca. Cuspiu longe, porém, vendo que brilhava, levantou da cama e foi ver o que era.
— Mãe, mãe! Caiu um dente — gritava, entrando disparado na cozinha. Mas a mãe não se encontrava. Só a Vovó Jurema. — Vovó, Vovó, veja, caiu um dente meu.
— Você já é um homenzinho — disse a avó, tomando o dente e analisando-o com seriedade e devolvendo-o ao menino. Estava sentada no caixão de lenha, ao lado do fogão, tecendo tricô. Tinha a estatura de uma menina, cabelos curtos e brancos mal enrolados num lenço de bolinhas. Estava recurvada sobre as agulhas compridas, que se trançavam com rapidez e precisão, enrolando fios brancos e vermelhos sob o olhar atento do menino.
— Vou propor um negócio pra você — continuou a velhinha, parando novamente com o tricote. — Você me dá o dentinho e eu te dou um cruzeiro. O que acha?
Com o assentimento de Juliano, sacou uma bolsinha velha de sua sacola de compras, retirou uma moeda e entregou ao neto. O menino saiu em disparada até “escritório” do Roberval, que naquela época morava numa pequena pensão do Limoeiro. O quarto estava sempre atulhado de bugigangas, que variavam entre vídeo-cassetes coreanos até bonequinhos de madeira da China. Além dos produtos importados, o quarto estava sempre cheio de garotos que, à moda de Juliano, tinham ali um ponto de encontro e de partida para as aventuras diárias.
— Eu trouxe um pouco do dinheiro — disse Juliano, logo que avistou o comerciante. — Posso levar o Papai Noel?
— Quanto você tem? Um cruzeiro? Mmm! Se prometer que me traz o resto até o final do mês, pode levar.
Juliano quase explodiu. Era dele! O Papai Noel! O fato de que tinha dinheiro na mão dispensava qualquer discussão sobre o valor da moeda. Embora quase estourasse de felicidade ao abraçar seu boneco, não estava nem um pouco surpreso com a generosidade do vendedor. Somente à noite, depois do severo alerta da mãe quanto ao perigo de “receber presentes de certas pessoas”, o garoto começou a matutar sobre os três cruzeiros restantes que teria de viabilizar nas próximas semanas. Chegou a pensar em vasculhar os bolsos dos pais, mas uma lição recebida pelo irmão mais velho há poucas semanas desmotivava qualquer ação desse naipe. Podia pedir emprestado a um amigo, mas quem, com sua idade, teria aquela montanha de dinheiro? Estava definitivamente em maus lençóis. Ainda assim, abraçado ao seu novo parceiro de cama, gastou quase toda a pilha e os nervos da família fazendo o boneco guinchar e bambolear madrugada adentro.
Na manhã seguinte, embora a mãe estivesse sentada à mesa, procurou o colo da avó, que naquele momento dava os últimos retoques a um luxuoso cachecol de lã.
— Caiu mais algum dentinho, querido?
— Não.
— Que boneco mais lindo. — A avó olhava ao mesmo tempo o menino e a mãe, que lhe dizia na linguagem labial: “Ganhou de presente de um tal de Roberval”. — Ganhou de presente? Nossa, eu seria a criança mais feliz do mundo se no meu tempo eu tivesse uma coisa dessas.
Juliano sorria, mostrando orgulhosamente o buraco deixado pelo incisivo desaparecido.
— Quer continuar o nosso negócio?
— Ahn?
— Cada dentinho que você me trouxer, te dou um cruzeiro. Você topa?
— Nossa, Vovó. Ta falando sério?
À noite um Juliano preocupado e endividado tinha uma ventania dentro da cabeça. Moedas, brinquedos, o rosto mal barbeado e misterioso do Roberval, tudo se misturava por dentro das pálpebras. Perturbado, pulou da cama e foi ao espelho do banheiro ver o buraco na dentadura. Fez algumas caretas, simulando algum monstro de história
— Vovó — disse Juliano, no momento em que a velha colocava a chaleira no fogo para o café. Era sempre ela quem levantava mais cedo e preparava para todos o desjejum. Estranhou que o pequeno aparecesse àquela hora, mas recebeu-o como sempre num abraço caloroso.
— As pulgas te expulsaram da cama? — perguntou a velha.
Juliano riu, forçando para manter a boca fechada.
— Lembra, fofó, daquele negócio que você prometeu?
— Sei. Dos dentes. O que é que tem?