Em todos os números da revista Seduções havia pelo menos dois artigos que falavam de um bando de demônios chamados cubanos e soviéticos. Eram impressionantes os relatos dos infelizes que conseguiam fugir, com muita sorte, dos castigos infligidos por aqueles monstros. Eram os comunistas, seres terríveis, com dentaduras de aço e espinhos nas pontas dos dedos. Sua crueldade estava prestes a romper fronteiras, e se não lhes déssemos combate imediato, estaríamos fritos.
Fiquei com medo dos comunistas, o que era bem justificado pelo modo misterioso como meu pai se referia a eles. O revólver 22 guardado na gaveta do guarda-louça fora comprado em 1969, não para nos defender dos militares, que estavam devastando toda a vida inteligente do país, mas dos infernais comunistas.
Meu pai acreditava que os americanos eram nossos heróis. Guardava ainda os ruídos da guerra, acompanhados com paixão pelo rádio vinte e cinco anos antes. Os “rapazes” salvaram o mundo dos alemães, dos italianos e dos japoneses (o 1o Eixo do Mal), e agora estavam nos salvando dos cubanos e dos soviéticos (o 2o Eixo do Mal).
Após derrubar os demônios russos, os americanos descobriram um 3o Eixo do Mal, desta vez instalado no Oriente Médio. A partir do final dos anos 80, a revista Seduções parou de demonizar os soviéticos e passou a apresentar os horríveis retratos dos homens maus do Oriente. Os estadunidenses e o resto do mundo estavam sendo preparados para as novas ações salvadoras dos grandes heróis.
Enquanto aguardávamos, naquela madrugada sinistra de 2003, a queda das bombas sobre Bagdá, meu pai sentiu qualquer coisa rachar na sólida estrutura da sua fé. Sabia que os aviões estavam chegando, e lá naquele amontoado de construções havia crianças, mulheres e homens que nada haviam feito aos americanos. Estavam prestes a morrer, seus braços e pernas seriam estilhaçados em nome da luta do Bem contra o Mal. Alá não os salvaria, e as grandes pátrias democráticas haveriam de se calar, vergonhosamente. Os grandes heróis de Hollywood se aquietaram perante o abate dos inocentes, a carnificina ao vivo e a cores, a degradação súbita desta humanidade que a tanto custo se levanta das trevas primordiais!
Como meu pai, durante muitos anos acreditei que os americanos eram os heróis do mundo. Somente aos dezesseis anos, quando caiu em minhas mãos um livro de Tolstoi, percebi, surpreso, que os russos eram gente. Tinham sentimentos, amavam, sofriam. Desfrutavam, como eu, as belezas e inconstâncias da Natureza. Eles não eram monstros!
A revista Seduções mentiu para mim. Que coisa feia!
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