Os gregos botaram o homem no centro do universo. Desde então, tudo tem sido feito para o seu regalo. Mesmo os peixes abissais, habitantes das profundezas oceânicas, foram criados para atiçar a nossa curiosidade. Mesmo as estrelas cuja luz não nos alcança, estão no infinito aguardando nossa nave espacial. Se não existissem os homens, elas não existiriam?
Ainda hoje acreditamos que somos os seres escolhidos, os filhos diletos de Deus. Somos os únicos capazes de criar cultura, disse-me um certo professor acadêmico.
Poucos percebem que a cultura se produz a cada instante, nas mais sutis das atividades. Os animais que consideramos irracionais criam comportamentos, desvendam seus próprios mistérios, buscam meios para facilitar suas próprias vidas. Quando dizemos que um golfinho ou um cão são inteligentes, estamos julgando-os segundo parâmetros da inteligência humana. Mas a inteligência do golfinho, ou do cão, são fenômenos por nós inalcançáveis.
Se você puser seu cachorro no automóvel, transportá-lo a uma distância de vinte quilômetros e ali abandoná-lo, é muito provável que no dia seguinte ele estará de volta a casa. Como o cão realiza essa proeza? Faro? Impossível. A mistura dos odores contemporâneos não lhe permitiria seguir o rastro de cheiro deixado pelo dono. Seria mais correto admitir que o cão realiza uma proeza que está muito além da nossa compreensão.
O voejar de um besouro em torno da lâmpada parece um fato banal, mas na verdade é uma manifestação cultural elaborada no decorrer de alguns milênios. Obviamente, o besouro não tinha lâmpadas em torno das quais voejar há pouco mais de um século. Mas quando Thomas Édison acendeu a primeira lâmpada, e o besouro sentiu aquele tremendo impulso de em torno dela voejar, soube-se que trazia desde seus ancestrais aquela sabedoria do vôo circular em torno da luz. Tente você, leitor, voejar em torno da lâmpada. Se não conseguir, compreenderá que o exercício daquele inseto de aerodinâmica duvidosa é uma manifestação cultural soberba, que não pode ser menosprezada.
Comodamente dizemos que essas manifestações são mero instinto animal (da mesma forma como tentamos desclassificar a poderosa capacidade das mulheres em demonstrar as infantilidades masculinas denominando-a intuição feminina). Mas como criou-se o instinto, senão através da experiência milenar, e o que é a cultura, senão experiência acumulada? Embora a academia não admita, esses seres que denominamos animais — como se nós, humanos, fôssemos outra coisa — pois bem, esses animais têm muito a nos ensinar, mas nós os tratamos com o desprezo correspondente à nossa ignorância das coisas essenciais.
Melhor chamá-los de bichos, para diferenciá-los dos animais poluentes construtores de bombas. Sim, os bichos, quantas lições teremos de reaprender com eles! Dizemos que são selvagens e violentos, pois matam quando estão com fome. O que faria você, leitor(a), se estivesse no limite da fome? O que difere os bichos dos homens é que estes matam quando não estão com fome.
Você pode maldizer os pernilongos, que lhe sugam alguns miligramas de sangue, mas que alternativa eles têm? Contra uma simples picada no braço você lhe desfere um tapa mortal. Você detesta as formigas que lhe depredam a roseira, então vai ao jardim e despeja um balde d’água quente ou um pacote no veneno no buraco do formigueiro, levando à morte um milhão de vidas. Sim, vidas! Vidas dignas, merecedoras de estarem vivas. Mas a nós, os seres superiores, foi dado o direito sagrado de matar e até extinguir todos aqueles que nos incomodam.
Preferimos ater-nos ao caráter utilitário dos bichos. Os cavalos são ótimos animais de carga e de corrida, os cães são grandes amigos das crianças, os papagaios são encantadores, os leões são admiráveis. Mas quando adoecem, tornam-se um peso. Os donos sensíveis procuram remédio, os insensíveis abandonam os bichos nas ruas. Talvez não perceberam que a principal função de um bicho, como de um ser humano, é viver. Isto é, curtir a vida, comer bem, dormir confortavelmente, passear, namorar, transar, procriar, morrer com dignidade!
Talvez seja difícil entender iniciativas como as das ONGs que tentam tirar os bichos das ruas para proporcionar-lhes uma vida mais digna. Por falta de espaço, os integrantes dessas organizações levam os infelizes para tratamento em suas próprias casas, mas alguns vizinhos ficam incomodados com os miados e os latidos.
A comunidade precisa aceitar o fato de que os “animais de rua” são conseqüência direta da nossa civilização, portanto, são responsabilidade de todos. De alguma maneira, todos temos de nos “incomodar” com eles, pois merecem ser recompensados pelos momentos de prazer que nos proporcionam. Afinal de contas, fomos nós que os tiramos da selva, nós os trouxemos para a cidade, para dentro de nossas casas.
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