sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O AMOR NOS TEMPOS SEM CÓLERA

O relato é trivial, mas traz em anexo uma realidade profundamente triste. Mais de uma vez, em minha cidade, ouvi rapazes dizendo que pretendiam se casar para poder transar com a namorada — um deles já foi vereador e é atualmente um respeitável comerciante.
Nesses casos o casamento configura-se uma crueldade sem tamanho. A moça quer se casar porque acredita ter encontrado o seu príncipe, o seu amor! Mas o rapaz só quer um bocado de sexo e encontra no cerimonial a chave para o objeto desejado.
Muitos casais descobrem na cama suas incompatibilidades. Mas a sociedade não permite que se deitem juntos antes da sua chancela. Os noivos poderiam descobrir que o “amor” é uma paixãozinha de nada, que desaparecerá ao primeiro contato físico mais intenso. Mas a sociedade tem suas leis, e ai daqueles que ameaçam rompê-las!
Não há criação mais bela, aos olhos de um homem, que um corpo de mulher. Aos olhos de uma mulher, idem! A mulher bela descobre bem cedo — olhando no espelho ou colhendo elogios — que suas linhas foram desenhadas com esmero pelo artista sobrenatural. A partir de então, poucas bonitas escapam à tentação de dedicar cada minuto do dia à adoração, melhoramentos e conservação da própria beleza.
Não há razão para se pensar que a mulher bela é naturalmente burra. Sua ignorância dos conhecimentos básicos escolares — desconsiderando aquela parcela de belas-cultas-poderosas — deve-se quase sempre ao fato de passar a vida olhando para si mesma, em vez de olhar os livros. E com isso consome sua existência, até o instante da descoberta inevitável: o tempo passou e a beleza se foi!
A partir desse momento trágico, as que pescaram maridos ricos vivem na folga e podem conservar o charme por mais alguns anos. Mas aquelas que trabalham duro terão de encontrar novos caminhos para justificar sua passagem terrena. Nisso se assemelham à maioria dos homens: vivem com os pés na terra, a grande fonte de conhecimento!
Quanto ao homem que se deixou seduzir pela jovem bela, dizendo-se apaixonado por ela, terá de buscar novos argumentos para justificar o amor. O que era mesmo o amor? O desejo de estar com ela, na presença daquele mimo, daqueles traços irretocáveis, daquela pele de pêssego!? Mostrar para os amigos aquela conquista fazia parte do pacote do amor. Deleitar-se com aquela figura graciosa tirando-lhe as roupas, usufruir daquela deusa magra e consistente, sentir o seu calor, experimentar o seu sumo, morder a sua carne cheirosa! Era isto o amor? Mas e quando toda a beleza desaparecer? Se ela ficar velha e feia, será igualmente amada? Essa é uma pergunta que corre o mundo desde o tempo dos faraós, e os homens estão sempre fugindo dela. Pois todos sabem que a resposta é uma bofetada na sua estrutura moral!
Sabemos que raríssimos homens permanecerão ao lado de uma mulher doente, velha e feia sem um sentimento de fracasso. Talvez alguns consigam obter o mesmo prazer daquela presença, se a pele da mulher amada estiver descorada, seus dentes amarelados, os cabelos ressequidos e quebrados, a tez manchada, as pernas alteradas e trôpegas, a gordura acumulada em todos os hemisférios. O mesmo desejo de abraçá-la, o mesmo ímpeto de contar a ela as novidades, a mesma vontade de fazer uma viagem e construir uma casa de praia num paraíso tropical! Será isso o amor? Teremos de chegar ao extremo oposto do “casal perfeito” para entender que realmente nos amamos?
Somente os velhos sabem, porque o tempo passou e o amor já concedeu todas as provas. Amar uma moça bonita é fácil. Mas não é amor de verdade, é somente desejo e vaidade, com raras e belas exceções. A conquista da jóia nos empresta o seu brilho, da fruta o seu sabor. Quando o brilho e o sabor tiverem desaparecido restará a brisa e o vento tempestuoso no coração daqueles que de fato se amam.

Um amor de verdade, sim, eu o vi muitas vezes. Naqueles velhos que andam pelas calçadas da minha cidade, que param de quando em quando para mostrar nos jardins da vizinhança os tufos de flores. Ela se abaixa para afagar a cabeça de uma cachorrinha fofa, depois se levanta e abraça-se ao velho, que torna a apanhar a sua mão. Depois seguem sem medo das horas que se dissipam.

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