segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

ABNEGADOS

Começou com meu tio Michaelys, que trabalhava de saqueiro na cerealista de meu pai. Exímio pescador, gostava da arte da pesca. Mas quando ia conosco aos acampamentos de pescaria raramente descia ao rio. Permanecia no local do pouso, arrumando a barraca, limpando a área e preparando o almoço. Quando voltávamos do rio, contando as mil e uma valentias e vantagens que obtivéramos uns sobre os outros, tio Michaelys já estava com tudo arrumado. O cheiro do churrasco impregnava o acampamento e tudo estava perfeito. Ele também sabia preparar um saboroso tutu de feijão, com que enchia nossas panças necessitadas de energia para mais uma tarde de aventuras.
Apesar de toda a grita dos valentes pescadores — que se entretinham contando as imperícias uns dos outros e as vantagens de si mesmos, o que significava menor e maior capacidade para manejar um barco a remo, menor ou maior destreza ao lançar um molinete, menor e maior habilidade para fisgar um piau ou um mandi — eu percebia que o mais que conseguíamos traduzir, além da nossa evidente infantilidade, era aflição. Um desejo de provar a todo instante o quanto éramos poderosos perante a fraqueza e a inabilidade dos outros. Mas havia entre nós aquele que a tudo observava, e que sobre todas as coisas mantinha um sorriso de plena satisfação. Não havia manejado o barco e o molinete, não havia pescado nada, não havia contado nenhuma vantagem, mas estava absolutamente seguro de ter feito a coisa certa. Tio Michaelys entregava o melhor de si para que nossa turma pudesse se divertir com aquilo que sabíamos fazer de melhor: valentias, trapaças e gabolices.
Nos anos seguintes encontrei outros como meu tio, aqueles que lavam a louça da churrascada enquanto os outros jogam baralho e mostram o quanto são homens. Também encontrei aqueles que se entregam a causas perdidas, enquanto outros aproveitam a perdição da causa para obter grandes lucros. Então compreendi que a entrega põe vida às nossas almas egoístas e enferrujadas. Todos os nossos problemas desaparecem enquanto lavamos a louça e os outros disputam o melhor pedaço da sobremesa. Muitos abnegados cidadão, que lutam pela justiça e que nunca irão a Dallas gastar dólares obtidos na ilegalidade, estarão plenamente satisfeitos consigo mesmos, enquanto os homens-guris passam a vida se ferindo para mostrar o quanto são fortes e espertos!

Um comentário:

João Carlos Salvador disse...

Hay, como vai Chico?
Vejo que ainda martela pianos pelos corredores...
abraço
João Salvador
joao@zuton.com.br