terça-feira, 28 de abril de 2009


Acabei de decifrar 
o enigma:
cada ser é
seu próprio paradigma!

Para que serve um bicho?


Os gregos botaram o homem no centro do universo. Desde então, tudo tem sido feito para o seu regalo. Mesmo os peixes abissais, habitantes das profundezas oceânicas, foram criados para atiçar a nossa curiosidade. Mesmo as estrelas cuja luz não nos alcança, estão no infinito aguardando nossa nave espacial. Se não existissem os homens, elas não existiriam?

Ainda hoje acreditamos que somos os seres escolhidos, os filhos diletos de Deus. Somos os únicos capazes de criar cultura, disse-me um certo professor acadêmico.

Poucos percebem que a cultura se produz a cada instante, nas mais sutis das atividades. Os animais que consideramos irracionais criam comportamentos, desvendam seus próprios mistérios, buscam meios para facilitar suas próprias vidas. Quando dizemos que um golfinho ou um cão são inteligentes, estamos julgando-os segundo parâmetros da inteligência humana. Mas a inteligência do golfinho, ou do cão, são fenômenos por nós inalcançáveis.

Se você puser seu cachorro no automóvel, transportá-lo a uma distância de vinte quilômetros e ali abandoná-lo, é muito provável que no dia seguinte ele estará de volta a casa. Como o cão realiza essa proeza? Faro? Impossível. A mistura dos odores contemporâneos não lhe permitiria seguir o rastro de cheiro deixado pelo dono. Seria mais correto admitir que o cão realiza uma proeza que está muito além da nossa compreensão.

O voejar de um besouro em torno da lâmpada parece um fato banal, mas na verdade é uma manifestação cultural elaborada no decorrer de alguns milênios. Obviamente, o besouro não tinha lâmpadas em torno das quais voejar há pouco mais de um século. Mas quando Thomas Édison acendeu a primeira lâmpada, e o besouro sentiu aquele tremendo impulso de em torno dela voejar, soube-se que trazia desde seus ancestrais aquela sabedoria do vôo circular em torno da luz. Tente você, leitor, voejar em torno da lâmpada. Se não conseguir, compreenderá que o exercício daquele inseto de aerodinâmica duvidosa é uma manifestação cultural soberba, que não pode ser menosprezada.

Comodamente dizemos que essas manifestações são mero instinto animal (da mesma forma como tentamos desclassificar a poderosa capacidade das mulheres em demonstrar as infantilidades masculinas denominando-a intuição feminina). Mas como criou-se o instinto, senão através da experiência milenar, e o que é a cultura, senão experiência acumulada? Embora a academia não admita, esses seres que denominamos animais — como se nós, humanos, fôssemos outra coisa — pois bem, esses animais têm muito a nos ensinar, mas nós os tratamos com o desprezo correspondente à nossa ignorância das coisas essenciais.

Melhor chamá-los de bichos, para diferenciá-los dos animais poluentes construtores de bombas. Sim, os bichos, quantas lições teremos de reaprender com eles! Dizemos que são selvagens e violentos, pois matam quando estão com fome. O que faria você, leitor(a), se estivesse no limite da fome? O que difere os bichos dos homens é que estes matam quando não estão com fome.

Você pode maldizer os pernilongos, que lhe sugam alguns miligramas de sangue, mas que alternativa eles têm? Contra uma simples picada no braço você lhe desfere um tapa mortal. Você detesta as formigas que lhe depredam a roseira, então vai ao jardim e despeja um balde d’água quente ou um pacote no veneno no buraco do formigueiro, levando à morte um milhão de vidas. Sim, vidas! Vidas dignas, merecedoras de estarem vivas. Mas a nós, os seres superiores, foi dado o direito sagrado de matar e até extinguir todos aqueles que nos incomodam.

Preferimos ater-nos ao caráter utilitário dos bichos. Os cavalos são ótimos animais de carga e de corrida, os cães são grandes amigos das crianças, os papagaios são encantadores, os leões são admiráveis. Mas quando adoecem, tornam-se um peso. Os donos sensíveis procuram remédio, os insensíveis abandonam os bichos nas ruas. Talvez não perceberam que a principal função de um bicho, como de um ser humano, é viver. Isto é, curtir a vida, comer bem, dormir confortavelmente, passear, namorar, transar, procriar, morrer com dignidade!

Talvez seja difícil entender iniciativas como as das ONGs que tentam tirar os bichos das ruas para proporcionar-lhes uma vida mais digna. Por falta de espaço, os integrantes dessas organizações levam os infelizes para tratamento em suas próprias casas, mas alguns vizinhos ficam incomodados com os miados e os latidos.

A comunidade precisa aceitar o fato de que os “animais de rua” são conseqüência direta da nossa civilização, portanto, são responsabilidade de todos. De alguma maneira, todos temos de nos “incomodar” com eles, pois merecem ser recompensados pelos momentos de prazer que nos proporcionam. Afinal de contas, fomos nós que os tiramos da selva, nós os trouxemos para a cidade, para dentro de nossas casas.

Quem diz que não tem nada a ver com isso, precisa aprender algumas lições com nossos amigos bichos. Neste estressante mundo contemporâneo, nunca se viu um gato preocupado com o déficit bancário, um cachorro neurótico porque o Corinthians perdeu mais uma, um serelepe indisposto com a sogra, uma maritaca em dívida com a panificadora da esquina... Enfim, são eles ou somos nós o problema?

segunda-feira, 27 de abril de 2009

FLAMINGOS



Serei o barqueiro silencioso

na terceira margem do rio,

aguardando o romper das ondas

que tragam de volta

o doce encanto dos flamingos.

 

Te amarei mansamente,

neste lado

da lua

em eclipse.

 

Mas deixarei pistas,

destes meus olhos em fuga...

Que algo ainda vivo

na essência

da história que somos

possa iluminá-los.

domingo, 26 de abril de 2009

AS MENTIRAS DA SEDUÇÕES

Em todos os números da revista Seduções havia pelo menos dois artigos que falavam de um bando de demônios chamados cubanos e soviéticos. Eram impressionantes os relatos dos infelizes que conseguiam fugir, com muita sorte, dos castigos infligidos por aqueles monstros. Eram os comunistas, seres terríveis, com dentaduras de aço e espinhos nas pontas dos dedos. Sua crueldade estava prestes a romper fronteiras, e se não lhes déssemos combate imediato, estaríamos fritos.

Fiquei com medo dos comunistas, o que era bem justificado pelo modo misterioso como meu pai se referia a eles. O revólver 22 guardado na gaveta do guarda-louça fora comprado em 1969, não para nos defender dos militares, que estavam devastando toda a vida inteligente do país, mas dos infernais comunistas.

Meu pai acreditava que os americanos eram nossos heróis. Guardava ainda os ruídos da guerra, acompanhados com paixão pelo rádio vinte e cinco anos antes. Os “rapazes” salvaram o mundo dos alemães, dos italianos e dos japoneses (o 1o Eixo do Mal), e agora estavam nos salvando dos cubanos e dos soviéticos (o 2o Eixo do Mal).

Após derrubar os demônios russos, os americanos descobriram um 3o Eixo do Mal, desta vez instalado no Oriente Médio. A partir do final dos anos 80, a revista Seduções parou de demonizar os soviéticos e passou a apresentar os horríveis retratos dos homens maus do Oriente. Os estadunidenses e o resto do mundo estavam sendo preparados para as novas ações salvadoras dos grandes heróis.

Enquanto aguardávamos, naquela madrugada sinistra de 2003, a queda das bombas sobre Bagdá, meu pai sentiu qualquer coisa rachar na sólida estrutura da sua fé. Sabia que os aviões estavam chegando, e lá naquele amontoado de construções havia crianças, mulheres e homens que nada haviam feito aos americanos. Estavam prestes a morrer, seus braços e pernas seriam estilhaçados em nome da luta do Bem contra o Mal. Alá não os salvaria, e as grandes pátrias democráticas haveriam de se calar, vergonhosamente. Os grandes heróis de Hollywood se aquietaram perante o abate dos inocentes, a carnificina ao vivo e a cores, a degradação súbita desta humanidade que a tanto custo se levanta das trevas primordiais!

Como meu pai, durante muitos anos acreditei que os americanos eram os heróis do mundo. Somente aos dezesseis anos, quando caiu em minhas mãos um livro de Tolstoi, percebi, surpreso, que os russos eram gente. Tinham sentimentos, amavam, sofriam. Desfrutavam, como eu, as belezas e inconstâncias da Natureza. Eles não eram monstros!

A revista Seduções mentiu para mim. Que coisa feia!

(OBSERVAÇÃO: A partir de 1945 os Estados Unidos explodiram 1029 bombas atômicas, no deserto e no mar, em nome do conhecimento científico. Duas delas mataram alguns milhares de japoneses, nas cidades de Hiroshima e Nagazaki. É o único caso de utilização de armas de destruição em massa que se tem conhecimento).

sábado, 25 de abril de 2009

AS CRIAS DO CRIADOR


Quando não havia nada,

as tardes do Criador não eram tardes,

porque não havia os dias.

O Criador olhava para o nada

e nada sentia, nada pensava e nada vivia.

E como não havia nada

que o impulsionasse a criar coisa alguma,

lá ficou o Criador em seu nada,

dizendo para si mesmo

que inventar o mundo

era uma dificuldade danada.

 

Mas então o Criador inventou as vespas

que inventaram o papel,

depois inventou as aranhas,

que inventaram a rede e a tarrafa,

então inventou as espigas de milho

que inventaram a ordem unida,

e depois vieram as bromélias,

que inventaram a espiral, 

e o copo de leite inventou a parábola,

as abelhas inventaram a monarquia

e o hexágono,

os fungos inventaram a penicilina,

e os pernilongos inventaram

a injeção intramuscular,

as maçãs inventaram a lei da gravidade,

as borboletas inventaram a flâmula,

as nuvens inventaram a eletricidade,

os lagos inventaram o espelho, 

os rios inventaram a curva,

as sementes de dente-de-leão

inventaram o pára-quedas

e os pássaros inventaram

a si mesmos.

No sétimo dia Deus

inventou o homem,

que tem inventado as mais sofisticadas

técnicas de copiação.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Conto Americano

A neve estava caindo. O frio era tão intenso que nenhuma alma viva se arriscava a sair da toca, exceto o pequeno Dilon, que acabara de abrir a porta da frente, numa temperatura de aproximados -35o C.
A leveza da neve caindo, o desejo de que todas as crianças do mundo pudessem presenciar aquele fenômeno mágico na véspera do Natal, tudo misturado ao sofrimento do frio que doía até nos ossos, resultou numa pequena lágrima. Formou-se na borda do olho esquerdo, transbordou e rolou até metade do rosto. Dilon levou a mão à face e saiu correndo para dentro de casa.
— Veja, mamãe, lágrima congelada!

domingo, 19 de abril de 2009

Sem classe

Nasci assim, sem classe,
sem tique, sem passe,
para o seu etiquetado coração.

Dias atrás fui cobrar uma conta do Euclides, meu antigo professor de matemática. Há meses ele vem me enrolando. Agora saiu-se com esta:
— Você sabe, Chico, a minha família, como a tua, você sabe, somos da classe média baixa e...
Passou então a uma lengalenga sobre cheques voltando, salário em atraso, a saúde da sogra, o batizado da neta. Escutei uns trechos recortados, enquanto repicava nas bordas ovais do meu crânio... classe média, classe média baixa! Será que o Euclides realmente acredita nisso, ele, um sujeito tão inteligente!?
Talvez eu pareça arrogante, mas não me venha com essa de classe, Euclides. Se quiserem, botem o meu número na lista, minha fotografia na lápide, enterrem meu corpo na vala comum, façam o que quiserem lá entre vocês com meus despojos. Mas não me venham dizer que sou da classe... que história é essa de classe?
Classe, é uma coisa criminosa falar dela e ainda mais acreditar nela. Tem os podres de ricos, os meio ricos, os pobres e os miseráveis. Mas como entrou na cabeça dessas pessoas uma tal fé em classes? Classes não se comunicam, são estanques, limitadas por cifras, ou pela falta delas. Classes não caminham, apenas se dispersam. Não somam, apenas amontoam. Não dividem, apenas estilhaçam.
Vejo olhos de antigos correligionários me espiando nas esquinas, enquanto converso sem culpas com o dono do carro chique conversível sobre a última conquista do vôlei brasileiro. Olhos ainda mais aflitos estão os da dona do cartório quando me flagra sentado ali na frente da banca de sorvete tomando cerveja com carregadores braçais. Talvez acredita que eu deveria ser um sujeito requintado, já que sou das letras e amigo da sua família. Mas estou de chinelas e camisa amassada, preocupado menos com a elegância das lhamas que trançam pernas pela avenida feito Giseles Bünchens, mais extasiado com a elegante retirada do sol entre os galhos do cedro da praça.
Classe é para os nobres, que precisam de corpos caídos para sustentá-los na montanha. Classe é dos que se entregaram ao vício do lamento, dos que se renderam ao instituto do homem burocrático, dos que aceitaram a humanidade como segmento isolado de um todo dinâmico que se remonta a cada década.
Abaixe a cabeça para a passagem da nobreza. Morra todos os dias no vazio do seu saldo bancário. Acredite na mesquinhez dos papéis que te põem definido, pronto e isolado feito um boneco de vitrine. Acredite no jogo e no veredicto que te faz medíocre e derrotado pelas regras sagradas de homens infalíveis. Amontoe-se na classe dos mortos enquanto a caravana passa, abaixe a cabeça e ela estará para sempre decepada.
Não, Euclides, não sou de classe, nem alfa, nem beta, nem gama. Sou completamente sem classe, e se vier um janota de nariz empinado para o meu lado, leva uma bicuda.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

O tempo do corpo


Tudo que conhecemos é relação. Através da observação dos relacionamentos que os objetos mantêm entre si, podemos visualizar o tempo, esse elemento físico vaporoso, intocável e transparente. Estudando o espaço, e a maneira como nele os objetos se movimentam, afastando-se, aproximando-se e interagindo uns com os outros, até somos capazes de manipular as horas, como se elas fossem, de fato, algo concreto e palpável. Mas não são as horas que manipulamos, e sim, os objetos que a elas relacionamos.
Quando Einstein disse que “o tempo não existe”, na verdade quis dizer que “o homem criou o tempo”. Para entender melhor, imagine que você está a cinco quadras de casa. Vai demorar dez minutos até chegar em frente ao portão. A sua noção de tempo vai ficar ainda mais nítida se você contar os passos. Mas a sensação da passagem do tempo nada mais é do que a passagem dos espaços. A cada passo, a paisagem à sua frente se modifica. Mas se você se concentrar em outra coisa, uma lembrança ou um plano futuro, a paisagem desaparecerá. Será percebida pela sua retina e enviada até o cérebro, mas o cérebro estará ocupado com outra coisa. Estará pensando, por exemplo, onde estava a existência quando você não existia! Estará talvez pensando que Deus não desce mais até nós porque sabe muito bem o que fazemos com as criaturas aladas. E quando você vê, está diante do portão da sua casa, surpreso por ter chegado tão rápido! E você pensa: “Nossa, o tempo passou tão rápido!”. Mas o que aconteceu é que você anulou o tempo. O espaço daquelas cinco quadras foi substituído por uma fantasia, um pensamento, uma alegoria, e o tempo tornou-se nulo, ou infinito.

domingo, 12 de abril de 2009

Para Simone de Beauvoir


Stanislaw bebeu da fonte da vida eterna. Quando lhe caiu uma geladeira na cabeça, ele levantou e saiu andando. Depois estourou a guerra atômica e Stan ficou no meio dos destroços, respirando aquele ar horrível durante mais de três séculos. Passava muita fome e frio. Depois o sol se apagou, a Terra virou uma bola de gelo e Stan continua lá, paralisado na escuridão, pensando, pensando...

sábado, 11 de abril de 2009