domingo, 22 de dezembro de 2013

A ALMA COLORIDA

Nietzsche, Baudelaire e outros pensadores europeus trouxeram ao Ocidente a noção oriental de que o saber estende-se para além da lógica européia. Causaram espanto e mal-estar, porque é sobre a “lógica” e a “objetividade” que ergueram-se todos os impérios europeus, desde suas construções jurídicas até suas cidades salomônicas. Ao beber daquela nova fonte muitos encheram-se de júbilo. Jack Kerouac, John Steinbeck, Hermann Hesse e outros escritores mostraram a vida dos homens errantes, que davam as costas ao processo de acumulação de bens e capitais para viver a liberdade. Havia algo maior para se fazer, além de prédios e códigos de conduta. Encantados com aquelas leituras, muitos jovens renunciaram ao seu conforto e regalias para entrar nessa aventura do desapego. Os beatniks foram fruto dessa busca pela alma. Queriam mostrar que a borboleta estava abandonando o casulo. E a humanidade teve a oportunidade de ver estampada nos rostos, nos gestos e nos corpos daquelas pessoas a sua porção colorida e lúdica. Era a alma do mundo que aflorava, em toda a sua exuberância! Nossa alma era pintada de um matiz intenso, era livre e generosa. Por que foi que tornamos a escondê-la?
Nossa alma ainda mantém seu estado de pureza inicial. Cada criança que surge está plena daquela beleza primitiva. Mas o capital soube incorporar aqueles anseios legítimos aos seus propósitos de expansão, apresentando nas vitrines as mesmas roupas e artefatos representativos daquela liberdade, porém mais sofisticados e atraentes. Sapatos, camisetas, motocicletas e milhares de outros objetos, tingidos de cores vibrantes, foram os chamariscos para a geração hippie, e um retorno ao mundo do capital. Em breve os jovens estavam novamente enredados no processo de acumulação, onde vigora todo o egoísmo e sombras ancestrais. Aquelas pessoas naturalmente criativas e revolucionárias optaram pelo conforto e a segurança, em vez do amor e da liberdade! Apesar do colorido aparente, na cultura do agora a alma está novamente blindada em tons monocromáticos.
O capital, ao qual a Ciência dá alicerce e substância, é um constante jogo de máscaras. E a alma não pode se expandir nesse meio. Porque a alma é a essência da humanidade e de cada indivíduo, é a verdade profunda dos seres. A Bíblia está certa, quando diz que “somente a verdade vos libertará”. No mundo do capital os gestos são medidos para esconder a verdade, e expandem-se até um limite suportável, além do qual encontra-se o ridículo e o grotesco. O medo de perder a razão, de viver situações de ridículo, de parecer frágil... o medo é o que nos obriga a enterrar a alma no mais fundo dos nossos temerosos corações. A alma, a verdade do nosso ser, muitas vezes pode tornar-se dura, cruel e dolorida, mas é, enfim, a nossa verdade. Deveria ser tratada como uma jóia — lapidada, polida e mostrada — não como uma vergonha. A sociedade e suas tradições estimulam a guardar as nossas vergonhas, e sufocam violentamente a apresentação das nossas verdades.
Engana-se quem pensa que a humanidade está cada vez mais nua, ao ver todos esses corpos femininos estampados nas capas de revistas. O invólucro continua resistente, as almas permanecem presas e tímidas sob o olhar artificialmente malicioso das musas peladas. Pois o que aquela mulher da revista quer mostrar, de verdade, não são suas curvas, sua pele dourada e um caminho para suas intimidades. O que ela deseja é o amor dos homens e a admiração das mulheres. E no fundo sabe, com infelicidade, que o tipo de amor que desperta não perdurará além dos anos em que sua pele esteja firme e desejável. Se ela der uma entrevista contando o amor que necessita, talvez os tarados babões que colecionam essas revistas perderão um bocado do tesão!

A verdade permanece escondida, porque acreditamos que ela nos delata. Poucos têm a oportunidade de constatar que a verdade é a porta para a felicidade real.
Em seu livro “Minha fé”, Hermann Hesse apresenta dois jovens que se encontram por acaso numa cabine de trem, e que precisam trocar algumas palavras em função da circunstância de viajarem num mesmo ambiente. Eles resumem o diálogo a monossílabos, com receio de mostrar o que trazem de verdadeiro em suas almas. E de que forma se manifestaria uma dessas almas?
“Se (...) um desses jovens fizesse o que realmente quer e sente, estenderia a mão ao outro ou, passando-lhe a mão pelo ombro, diria talvez isto: “Deus! Que linda manhã, tudo maravilhoso e estou de férias! Não acha minha gravata bonita? Tenho maçãs na mala, você não quer uma?”.
Mas é claro que ele não fará isso. Deixará sua alma bem escondida, para que se manifeste somente numa hora extrema.
“Oh, almas tímidas!” — continua Hesse. — “Quando irão vocês aparecer? Talvez belas e amigas, numa vivência libertadora, em união com uma noiva, na luta por uma crença, em ação e sacrifício — talvez bruscas e desesperadas, numa ação apressada de impulso do coração tiranizado, dissimulado, obscurecido, numa acusação selvagem, num crime, em estado de pavor? (...) Iremos desistir, iremos acompanhar a multidão e a inércia, sempre e de novo engaiolar o pássaro, continuar a passar anéis pelo nariz?”.

sábado, 21 de dezembro de 2013

POR QUE TEX NOS FASCINA?

Você já pensou por que gosta de ler os gibis do Tex? Qual será o segredo do sucesso desse “ranger” do Velho Oeste norte-americano? Tex Willer deve ser uma das revistas mais vendidas de todos os tempos, há várias décadas. São histórias bem tecidas, criativas e surpreendentes. Além das correrias pelos desertos do Arizona à caça de traficantes de armas e ladrões de gado, Tex enfrenta inimigos super-sofisticados. Numa de suas primeiras aventuras ele caça um alienígena que usa guerreiros apaches para minerar urânio. Noutra, entra com seu cunhado Jack Tigre num buraco no meio do deserto e lá eles encontram uma caverna gigante onde se desenvolve uma civilização tiranizada por um rei malvado. Outro atrativo irresistível do gibi é o grande número de excelentes desenhistas, que rabiscam os quadrinhos sem nenhum propósito de imitar uns aos outros. Mas não é somente por isso que gostamos de Tex, e que continuaremos lendo-o mesmo depois que um soberbo letrado disser que é uma leitura infantil. Gostamos dele não somente porque soca, prende e mata bandidos. Tex não é um educado homem da lei. É violento e impiedoso. Mas acima de tudo ele é um justiceiro. Também soca, prende e mata capitães, generais, xerifes, donos de ferrovias, prefeitos e outras altas autoridades. Realiza nosso sonho de justiça, levando para “sete palmos” ou para trás das grades todo aquele bando de gente fina que manda na cidade, no estado e no país, e que torra sem culpas e sem arrependimento o dinheiro subtraído do povo, ou que explora os mais fracos sob as mais diversas formas.

NOTAS
1 - Espero ter a oportunidade de ver pelo menos um número do Tex desenhado pelo meu amigo Carlos Magno, que já fez várias revistas da Marvel.
2 - Este texto é minha homenagem de Natal ao meu amigo Adelar Miecoanski, o maior roqueiro do Brasil e o maior colecionador de Tex das Américas.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

PROFUNDEZAS

Quem busca nas profundezas haverá de encontrar as pedras preciosas que o riacho arrastou desde sua nascente. Quem busca na superfície encontrará as garrafas vazias. 

Mas as coisas profundas também se revelam na superfície. Se me mantiver sempre nas profundezas sentirei falta do oxigênio das coisas fúteis.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

ESFERAS, ESPERAS

Sempre na espera rolando as esferas do relógio, da bola, da roda. A espera da esfera da Lua, da Terra e do Sol. Na borda da esfera esperando o infinito, o todo e a nada. A esfera da uva, do óvulo e do ovo, que de rebelde tomou forma ovalada.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

NAVIOS À DERIVA

Quando escreve sobre a humanidade futura, o cronista acredita que pode beirar as raias do fim do mundo – pelo menos, do mundo terreno, que certamente será extinto uma meia dúzia de anos antes da extinção do universo! Quando me projeto para aquele tempo que a memória ainda não alcança – porque ainda não chegamos lá – tenho uma certa dificuldade em ver as pessoas num estado de harmonia como aparecem em meus sonhos mais otimistas. Talvez por causa de alguns traumas que sofri em períodos de lutas, quando conheci os mais improváveis covardes que viriam compor alguns trechos da minha história. Inclusive eu próprio. 
Sim, é triste dizer, mas em conjuntos de cem pessoas quase sempre você encontrará duas ou três pessoas com quem pode realmente contar. As outras podem agradar você, trazer presentes e novidades, porém mal sentem o cheiro de queimado abandonam o navio e não se importam se você vai virar petisco de tubarão. Outras duas ou três talvez queiram trazer uns baldes d’água e contribuir para debelar o fogo, mas diante do perigo ficarão paralisadas, porque, por algum motivo inexplicado, em horas como essa sempre perdem o comando dos próprios músculos. 
Além da ignorância e da maldade, os comandantes do fim do mundo terão de combater a covardia daqueles que compõem as suas fileiras. Os antigos generais punham soldados à luta à base de discursos inflamados em favor de uma “pátria livre”. Geralmente, nesses casos, o que realmente levava os bravos aos campos de confronto era a possibilidade de saque das cidades conquistadas. Nas Forças Armadas os recrutas passam por uma lavagem cerebral tamanha que após alguns meses de treinamento brutal tudo que eles querem é seguir para a guerra – segundo me disse um antigo funcionário do Exército. Mais recentemente os soldados têm sido levados à luta à custa de muito dinheiro. Os States recrutam mercenários em vários países do mundo para levar adiante suas colunas mortíferas no Oriente Médio e outros confins. 
Nas lutas políticas ou intelectuais o que mantém o esquadrão em pé são os mais variados interesses, e é certo que em determinados momentos, quando o navio começar a adernar, os fracos pularão nos botes salva-vidas. F
Falo de cadeira: houve um momento em que me vi obrigado a deixar meus amigos aos tubarões, acossado por circunstâncias que estavam além das minhas forças. O que aprendi com isso? Que antes de ir à luta preciso combater o mil diabos que se debatem dentro da minha própria cabeça, para não correr o risco de ser o primeiro a perder a esperança e sair correndo de medo do bicho feio!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

QUAL É A DROGA?

Ser contra a liberação das drogas faz parte do papel da boa família cristã. Parabéns aos que lutam pelos seus filhos e contra os traficantes. Mas nesse caso há outras questões a considerar. Se mantemos a proibição, a piazada continuará fumando maconha às escondidas da família e se perdendo pelos becos da periferia em busca de um pacote da droga. E o narcotráfico agradece. Quem é contra a liberação precisa entender que no Brasil, como em todo mundo, quem quer droga tem droga, independentemente do número de apreensões pela polícia. A liberação tiraria o pé de apoio do narcotráfico, milhares de pessoas deixariam de ser assassinadas todos os anos. O trabalho mais difícil não está sendo feito pelas famílias que se arvoram contra a liberação: conversar com os filhos sobre as drogas. Aliás, poucos pais estão capacitados para conversar com os filhos sobre isso. As secretarias de Educação e de Saúde deveriam promover cursos para ensinar aos pais como conversar com os filhos sobre as drogas. Pois é um assunto complicado, e muito pouca gente está disposta a abrir o debate. Os drogados não são vítimas das drogas, são vítimas da nossa omissão, ignorância e covardia.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O PANELÃO E A FEBRE

O melhor das novidades tecnológicas não são os benefícios inerentes, porém os subjacentes. Elas sempre produzem reações inusitadas no ser humano, que de súbito vê-se  diante de novas possibilidades de comunicação, de saciedade, de realização.
O conhecimento que o Facebook tem-me trazido ao longo dos últimos dois ou três anos sobre a natureza humana equivale ao que obtive nos 45 anos anteriores. Um conhecimento quase sempre lamentável! A curiosidade natural me faz arrastar a “linha do tempo”, até meio sem querer, durante um ou dois minutos, então começo a sentir náuseas. Nunca vi tanta gente dizendo tantas asneiras num espaço tão curto!
Tem alguns que soltam farpas logo de manhã. Ameaçam, amaldiçoam, previnem-se contra os invejosos, prometem vingança antes mesmo de serem feridos, falam de pecados e demonstram todo o seu mal disfarçado preconceito. Há aquele tarado frustrado que posta mulheres nuas a cada cinco minutos (bem, pelo menos este nos alegra, pois o que há de mais belo que uma mulher nua?), e há também aquele obsessivo por gente destripada. E também aquele que encontrou neste local uma fossa para despejar todo o seu arcabouço de palavras sujas.
Mas ingresso no meio de toda essa lama há um fator positivo. Devemos considerar que toda crise é uma febre para produzir a cura. O Facebook é um símbolo da nossa grande crise existencial. É uma febre, estamos a mais de 40 Graus, temperatura em que se perde a noção e fala-se e age-se sem pensar. Mas alguma coisa boa deve finalmente sair deste panelão onde cozinhamos nossos sapos, cobras, aranhas e lagartos.

Louvo desde já aqueles que usam espaços como esse para trazer as flores recém-abertas e as frutas frescas de seus pomares. Há muita gente-gente aproveitando este maravilhoso instrumento chamado internet para arejar o mundo, jogando sua gota d’água limpa no copo sujo da nossa velha e lamentável história.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

ALIENADOS NA ESCURIDÃO

O rapaz está caído no chão, atordoado com uma pancada. Então chega um outro rapaz, o herói, e chuta o rosto daquele que está caído. Chuta a barriga, o peito e volta a chutar a cabeça daquele que já não pode se defender. O sangue jorra pelo nariz. Ele está desacordado, mas o agressor continua pisando chutando sua cabeça.
Não, eu não estou falando daqueles valentes rapazes que socaram suas vítimas desacordadas na Arena de Joinville no último domingo. Estou falando de um vídeo-game que jovens de 10 ou 12 anos estão jogando numa lan house a duas quadras da minha casa. Eles chutam a cabeça de um rapaz caído e sem defesa, e continuam chutando até desacordá-lo, ou até fender seu crânio para ver o sangue jorrar. Quando saem à rua, à vida real, se der uma briga e um rapaz cair ao chão, o que esses gamers vão fazer? Vão chutar-lhe a cabeça até fazer jorrar sangue. Pois os adultos lhes disseram que assim é a vida! Se foram adultos que criaram os jogos de morte, como os jovens (e as crianças) vão questionar, pensar que pode ser errado bater e matar covardemente um semelhante?
Os filmes de terror nascem nas almas de gente infeliz, criadas lá em Hollywood. Sabem que é um produto que vende, porque as pessoas sentem uma atração irresistível pela morte, pela violência, pelos zumbis, pelo horror. Pessoas bem resolvidas não precisam fazer coisas do gênero para viver. Esses filmes e esses games chegam aos olhos das nossas crianças sem nenhuma triagem das autoridades competentes. Ninguém contesta, ninguém comenta, ninguém reclama, e os nossos rebentos permanecem expostos a essa violência comprada! 
Quando jovens chutam a cabeça de seus semelhantes num jogo de futebol como se fossem inimigos, não temos o direito de nos surpreender. Nós somos testemunhas do que está acontecendo, somos coniventes com a destruição dos cérebros dessas jovens pessoas que tão pouco ainda sabem da vida. Lamento!

(Em tempo: O locutor Luis Roberto, da Globo, teve o bom senso de mandar desviar as câmeras da violência em Joinville, sob o pretexto de que eram imagens muito “fortes” para serem apresentadas numa tarde de domingo. Mas outras câmeras continuaram gravando, e todos os jornais da Globo reproduziram as cenas, inclusive as mais fortes, sem qualquer critério de horário. O que aconteceu? O que acontece sempre. A diretoria entendeu que para fazer bombar o ibope vale a pena apresentar a cabeça de um rapaz sendo esmagado. Agora imagine se fosse a cabeça do dono da Globo que estivesse sendo pisada. Ele apresentaria uma cena dessas no Fantástico, e depois novamente no Globo Esporte, e venderia a imagem para todas as TVs do mundo?)