quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A MORTE É CONSELHEIRA

O artigo intitulava-se “A morte é conselheira”, e tratava de algumas variações sobre o tema específico da morte para uma série de reflexões sobre a vida e sua evolução. O editor do jornal fez uma escolha adequada: publicou o texto integral, porém mudou o título — que eu havia emprestado de um capítulo do livro “Viagem a Ixtlan”, de Castañeda. Concordei, pois a publicação de um título desses, na segunda página de um jornal de uma cidade do interior, poderia causar incômodo.
Não se fale da morte, portanto, embora ela esteja viva e presente em quase todas as conversas entre pessoas com mais de quarenta anos, em todos os dramas cinematográficos americanos, em todos os noticiários e em todos os discursos dos pastores de plantão. Mas ninguém parece interessado em conversar sobre o milagre da morte, como o chamavam os personagens daquele belo filme “A estranha família de Antonia”.
Por enquanto, até onde sabemos eu e Vinícius de Moraes, nenhum ser humano foi capaz de fugir dela — com algumas exceções, sobre as quais os pastores religiosos estão mais qualificados do que eu para falar.
O meu sossego veio aos 25 anos, quando li “Todos os Homens São Mortais”, escrito em 1946 pela francesa Simone de Beauvoir. Ela mostra que a imortalidade é um fardo demasiado árduo para se carregar além do tempo que foi dado a uma vida natural. Morrer não é apenas um fato inevitável, é um dom e uma recompensa.
O protagonista, Conde Fosca, era um guerreiro no auge de sua juventude. Vivia na Itália, lá pelos anos 1.300. Numa ocasião encontrou uma garrafa, destampou-a, tomou o líquido que ela continha e, sem maiores explicações da autora, tornou-se imortal. Daquele momento em diante todos os ferimentos que Fosca recebia nas batalhas, por mais profundos que fossem, logo cicatrizavam. Quando lhe cortavam o pescoço ou feriam seu coração, Conde Fosca chegava a perder os sentidos, mas logo estava em pé. No início ficou espantado com esses acontecimentos incríveis. Mas logo tornou-se confiante, lançando-se aos maiores perigos para garantir a vitória de seus exércitos. Num intervalo entre as batalhas, apaixonou-se por uma mulher e constituiu família. Depois de alguns anos, viu sua esposa envelhecer e morrer. E o mesmo aconteceu com seus filhos e todos os seus amigos. Fosca peregrinou pela Europa derrubando ditaduras, e novas pessoas entraram em sua vida. Apaixonou-se outras vezes, formou novas famílias. Mas os anos passavam, e o guerreiro permanecia com a pele viva de sua juventude, seus braços e pernas não perdiam a vitalidade. Porém as esposas, filhos e amigos, vendo-se envelhecer inexoravelmente enquanto ele permanecia jovem, ficavam tristes, infelizes e, por fim, desesperados. Por que somente Fosca podia continuar vivo? Por que somente ele podia vencer o tempo? Por que Deus não lhes dava a oportunidade de continuar vivos e fortes? Apesar de todas as suas queixas, os anos corriam, e a vida se evadia daqueles corpos. Para Fosca eram cenas cada vez mais insuportáveis. Tornou-se empresário de sucesso, mas sentia-se infeliz com o desaparecimento contínuo e inevitável de seus afetos. Pensando em dar um fim à própria vida, golpeou-se com a espada, mas não morreu. Alguns anos depois deu-se um tiro na cabeça, continuou vivo, pulou sobre um precipício, mas no instante seguinte estava novamente inteiro. No final do século XIX Conde Fosca deitou-se no chão de uma floresta, decidido a nunca mais se mover dali. A terra haveria de absorvê-lo, como absorvia a todas as coisas vivas. Dormiu, mas acordou 60 anos depois, coberto de terra e folhas. Levantou-se, chacoalhou-se e seguiu para enfrentar mais um dia da sua imortalidade. Segundo Beauvoir, ele ainda habita entre nós!
Você pode imaginar um homem mais infeliz do que esse? E que destino atroz! Não poder morrer, não conseguir descansar jamais!
Que não se enganem os homens, quando pensam na morte: não há nada de errado com ela. Como dizia o monge francês Teilhard de Chardin, “se a morte só tivesse aspectos negativos, seria um fenômeno impraticável”


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