sábado, 25 de janeiro de 2014

ESCOLA CEREBRAL

Nascemos carecas, pelados e ignorantes, diz a sabedoria popular. Cada vez que uma criança vem à luz, deve fazer um novo reconhecimento do universo, uma nova constatação das possibilidades humanas. Seria ótimo se o conhecimento passasse de pai para filho através do sangue, dos genes! Não precisaríamos sofrer todas aquelas dores do aprendizado. Nasceríamos cada vez mais preparados para usufruir as graças da natureza, da cultura e da Ciência.
A escola está aí para facilitar esse processo, mas as coisas não estão funcionando também ali, no centro repassador de conhecimentos. Como qualquer outra instituição, a escola começa acreditando numa idéia, e depois apresenta uma tremenda dificuldade para livrar-se dela, ou para estendê-la ao alcance de outras idéias mais elaboradas. A escola ocidental trabalha há séculos na firme convicção de que o único aprendizado possível ocorre no cérebro.
Apesar de toda a retórica em torno da necessidade de praticar-se a interdisciplinariedade, ou mais, a transdisciplinariedade, palavras que enchem a boca dos acadêmicos, os nossos estudiosos parecem ignorar que a criatura humana realiza-se em muitas outras disciplinas além das escolares, ou que a estrutura humana é muito mais complexa do que essa lógica simplista em que está baseada a cultura européia. A natureza humana é feita de corpo, mente e sonhos. E mais algumas coisas que estamos para descobrir num milênio próximo.
A maior dificuldade dos professores em sala de aula é convencer os alunos de que a substância intelectual que tentam lhes enfiar na cabeça é melhor que o sorvete, o beijo, o perfume, a música, a paisagem, o jogo virtual. O conhecimento lógico, no qual nos baseamos desde Sócrates, costuma ser árido, salgado, desagradável. É natural que o jovem recuse, pois quer o melhor para si. Ele quer o doce que encontra nas relações com os colegas, não o salgado, e muito menos o azedo das fórmulas científicas!
A opção pelo cérebro acontece devido à sua qualidade de distinção, que dá aos homens o poder sobre as outras criaturas. Se é o intelecto que destaca o homem, concentremo-nos nele! Mas a partir dessa prática, nossos sentidos corporais estão tornando-se cada vez mais atrofiados. Ilude-se quem pensa que os estudantes de hoje só pensam “prazer, prazer”! O prazer que eles estão fruindo é extremamente conceitual, intelectualizado. Poucos descem os degraus da civilização para colher os frutos selvagens, as verdadeiras delícias, a torta da maçã de Eva!
Quando se trata do corpo, a escola sabe instruir os alunos a fazer ginástica para aprimorar os músculos. Preferimos esquecer que todo conhecimento, antes de chegar ao caldeirão cerebral, passa pelos sentidos físicos. Isto é um conhecimento tão antigo quanto a nossa civilização, mas qual escola tem-se empenhado em ajudar os garotos a reconhecer, a desvendar e a promover sua sensibilidade corporal? No máximo, fala-se da estrutura das papilas gustativas, da fisiologia dos olhos, dos labirintos auditivos. Mas onde está o professor que ensina ao aluno a maravilha do olhar? Qual mestre leva para a sala uma vitrola ou micro system para escutar Mozart ou Rolling Stones?
Limitamos nossos sentidos ao que eles nos dão cotidianamente. Ouvimos distraidamente uma música no rádio, ou passamos o dia “jogando conversa fora”. Sentimos o perfume de um jardim distante e sequer tentamos descobrir qual flor o emana. Deixamos a cargo de uma violenta publicidade decidir qual produto do boticário será mais agradável ao cérebro do parceiro do sexo oposto. Mas a disciplina do olfato, onde está? Os meninos aprendem que nariz e cérebro em conjunto decifram a imensa gama de aromas, mas não têm o privilégio de descobrir a impressionante ciência da perfumaria, as misturas dos odores, muito menos a importância do sentido do olfato na fixação da memória.
Não há nada mais nefasto à saúde humana (corporal, mental e espiritual) que a supressão da liberdade de pensar e de sentir. Quando a criança está aprendendo a elaborar seus sonhos, a escola vem com uma metralhadora, disparando análise sintática, orbitais logaritmos! Mas quanto desse conhecimento utilizamos fora da sala de aula? Fico imaginando que espécie de homem foi capaz de criar a regra que diferencia um hiato de um ditongo!
Para a escola, o ser humano é feito de um cérebro vivo e um corpo morto. Quando se fala de educação sexual, toma-se o cuidado de explicar aos pequenos os nomes científicos dos genitais — já que os apelidos desses órgãos, como os garotos os conhecem cotidianamente, é besteira, para não dizer pecado (e lá vem novamente a Igreja para estragar tudo). Também se fala sobre a prevenção de doenças, as funções reprodutoras, mas ninguém comenta ou discute com a gurizada o prazer — ou o desprazer — do ato sexual. Qual revolucionário mestre um dia terá a coragem de pronunciar o verbo gozar em sala de aula? Mas ele teria de se ver com a diretoria, então, é melhor que fique quieto. A diretoria só aprova se falar de sofrimento, pois está previsto no Livro Sagrado.
Há muito tempo sabemos que a função sexual, quando reprimida, leva a grandes desastres pessoais. E ninguém ignora que pessoas de doze anos em diante estão muito mais interessadas nos lábios, nos cabelos e nas pernas da(o)s colegas que na resolução dos enigmas matemáticos. A verdade está aí, diante dos nossos olhos, mas preferimos escondê-la sob o manto do pudor e a religiosidade.
Apesar dos corpos à mostra, da imensidão de seios, bundas e outras maravilhas que podemos encontrar num simples abrir de windows, nossos tabus crescem mais do que repolhos. Preocupada com o inevitável pendor humano a extremar-se nesse campo onde se mistura o prazer, a dor, o desespero e até a morte, a sociedade organizada legou às escolas a responsabilidade de explicar aos jovens como funciona, naquelas tediosas aulas de educação sexual — as quais, se não me engano, foram coerentemente devolvidas à gaveta de projetos na primeira oportunidade.

Não há nada mais inútil numa escola que professores estressados, tentando vencer o currículo programático ditado pelo governo. Grande parte desses profissionais seriam corretamente substituídos por psicólogos capazes de ter com os alunos uma conversa franca sobre suas carências e seus desejos mais profundos, aquilo que realmente importa para pessoas que têm entre doze e dezoito anos. Alguns outros profissionais, versados em Ciências, poderiam ser utilizados, não para repassar aquelas fórmulas e teorias que os alunos esquecem tão logo abandonam a sala, mas para mostrar a beleza e o mistério manifestado nos mínimos fenômenos naturais, como o desenvolvimento de uma semente e a explosão de uma estrela.
Transformamos em banalidades as maravilhas que ocorrem debaixo de nossos narizes e a escola confirma: as experiências adquiridas pelos alunos fora dos muros da instituição não possuem qualquer valor, pois não podem ser enquadradas em fórmulas e não estão incluídas no currículo programático. Uma semente de feijão, fosca, marrom e sem graça, escondida na terra, converter-se numa inflorescência espontânea, colorida e vibrante, pede algo mais que uma mera explicação de como se reproduzem as dicotiledôneas. Mas qual professor fala da poesia desse fenômeno extraordinário? Um corpo de tetas, brotado de outros corpos, assumindo individualidade e caminhando-se para saciar os estímulos provocados por outros corpos, é muito mais do que explicam os livros de fisiologia médica.
Escolas que pretendam formar boas consciências devem atentar para o que destaca um cidadão de fato de um robô. A matemática, a química e a física não criaram pessoas melhores. Proporcionam conforto material, mas atulharam nossas mentes com imagens febris e ruídos ensurdecedores.

As grandes vítimas das nossas omissões, como sempre, são os mais fracos, os jovens. E mais recentemente, as crianças, que também sentem o bombardeio. Não conversamos de verdade com eles, porque perdemos o contato. O tecido social torna-se cada vez mais amarrado nos velhos dogmas, mostrando rupturas aparentes para satisfazer os mais inquietos, mas tramando nas profundezas contra qualquer manifestação de luminosidade fora dos arquétipos do mercado. A leitura espontânea, a percepção poética, a descoberta do maravilhoso nas coisas simples, têm feito equilibrar o gráfico da nossa humanidade, enquanto o programa escolar o empurra para baixo.

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