terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O CÍRCULO DO PODER E A MORTE DOS CONCEITOS

Quando me restarem somente os ossos, 
e uma suposta consciência vagante por esses milharais, 
sobreviverão as formas exuberantes 
das frutas que me compuseram. 

Apesar de toda a correria em busca de produtos que satisfaçam a esta ou àquela fantasia de consumo, precisamos atentar para o verdadeiro objeto de procura dos seres humanos, em qualquer época, em qualquer civilização: a identidade pessoal. Estamos sempre querendo expressar o que somos, seja pelas nossas obras, seja pelas dos outros. 
Numa festa de aniversário há sempre um falador tentado mostrar a maravilha que ele é, com suas próprias palavras ou com expressões emprestadas de revistas e novelas. Uma dona de casa pode fazer de conta que tudo que quer é ver os filhos crescerem com saúde, e que o marido esteja sempre por perto. Mas se a deixarmos fazer o que realmente quer, certamente buscará experiências através das quais possa expressar o que ela é.
Desejamos possuir um caro vaso cerâmico, ricamente trabalhado por antigas civilizações. Isso talvez possa parecer um capricho burguês, mas o consumidor desse vaso está apenas buscando mostrar a si mesmo, ou a outrem, a sua identidade com a sabedoria milenar contida nesse objeto. Ou apenas está extasiado com aquela beleza, que em última análise reflete um extrato de beleza do observador, e que em alguns instantes o identifica como tal: um belo ser. Se o milionário adquire um Renoir, talvez queira mostrar ao mundo sua capacidade aquisitiva. Mas nenhum elogio de seus pares será tão compensador quanto ter em sua sala uma fração do espírito de um gênio da pintura, que de alguma forma estaria impregnando a identidade de seu proprietário atual.
A procura de identidade torna-se cada vez mais frenética, apressada e perigosa. Como os cães que farejam a fêmea no cio e não medem os perigos que a cercam, os buscadores de identidade raramente percebem as armadilhas em seu caminho.
Em cada peça publicitária há um apelo à identidade do provável consumidor. Os instrumentos de mídia põem-nos cada vez mais parecidos com algum modelo de pai, mãe, amante, milionário, esportista, artista, rebelde, inteligente, arrojado, independente, etc. Moderno é expressar o “ser” dentro dos padrões criados em algum escritório de publicidade de Nova York ou de São Paulo. Se você não usa celular, se não tem página no Facebook, se não toma uma atitude “agressiva” perante o mercado “cada vez mais competitivo”, se não tem cartão de crédito, se não usa aquelas expressões americanas que nos tornam tão chiques e sofisticados, você está fora do cenário. Por outro lado, estará livre para montar o seu próprio circo, tocar a sua própria música, criar os seus próprios conceit... não, por favor, não crie conceitos! É a palavra mais batida e surrada pela mídia. Como “qualidade de vida” — expressão permanente no bafo dos bons e dos maus políticos — “conceito” também é algo que não significa absolutamente nada.
Aqui por perto ouço muita gente falando em desgraças e catástrofes — apesar da magia dos celulares, da TV de plasma, dos conceitos e do design! Meus amigos intelectuais, vencidos pela inércia, concluíram que todas as revoluções são inúteis, porque o Sol há de se apagar e, com ele, todos os traços da nossa civilização. Pensam na morte e só falam cinzas. Mas continuo respirando o céu azul e dizendo “arco-íris”, “esperança”, “generosidade”. E mesmo que eu não queira e não aceite uma vida mais longa que as cinco ou seis décadas a mim concedidas, pressinto nos ares as brisas da ressurreição.
Se olharmos a rosa, que rompe da escuridão para dar-se nuns poucos dias, tão plena, tão certa, para depois ser esquecida pela eternidade... 
A humanidade que sou, e que somos, um dia sairá destas profundezas, florescerá, e o Sol que se apague, que o mundo nos esqueça... que tenhamos aberto a possibilidade de um mundo perfeito é maior que todas as negras premonições sobre a minha dor e a minha morte.
Romper o “círculo do poder”, como dizia Dom Juan de Castañeda, talvez seja a lição mais poderosa que qualquer indivíduo pode experimentar. Colocar-se em posição que possibilite essa ruptura é a atitude temerária. Mas chegar a esse ponto significa ter passado por uma série de circunstâncias reveladoras, um caminho de buscas que levam a uma explosão de luzes e dor. A dor de trocar de pele, ou de “limpar-se das tintas com que nos pintaram” (F. Pessoa) para descobrir a madeira de que somos feitos. Muitos letrados, mestres e até doutores jamais virão a saber o que seja essa “morte da cultura” para a descoberta da humanidade real. Permanecem citando autores renomados à beira da maçã, como a bela virgem que não teve a coragem de dar o primeiro bocado e abandonar o paraíso da ignorância.

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