As revoluções acabaram
depois que os revolucionários
tornaram-se escravos
de seus símbolos de liberdade.
Apesar de toda a correria em busca de produtos que satisfaçam nossas fantasias de consumo — o que nos faz pensar na humanidade como uma massa acéfala e bruta — precisamos atentar para o verdadeiro objeto de procura dos seres humanos, em qualquer época, em qualquer civilização: a identidade pessoal. Seja quando e onde for, estamos sempre querendo expressar o que somos, seja pelas nossas obras ou pelas dos outros.
Numa festa de aniversário, há sempre um falador tentado mostrar a maravilha que ele é, com suas próprias palavras ou com expressões emprestadas de revistas e novelas. Uma dona de casa pode fazer de conta que tudo que quer é ver os filhos crescerem com saúde, e que o marido esteja sempre por perto. Mas se conseguir falar de seus verdadeiros anseios, ela dirá que gostaria de vivenciar experiências através da quais possa expressar o que ela é.
Desejamos possuir um caro vaso cerâmico, ricamente trabalhado por antigas civilizações, ou sua imitação. Isso talvez possa parecer um capricho babão, “burguês”, mas o consumidor desse vaso está apenas buscando mostrar a si mesmo, ou a outrem, a sua identidade com a sabedoria milenar contida nesse objeto. Ou apenas está extasiado com aquela beleza, que em última análise reflete um extrato de beleza do observador, e que em alguns instantes o identifica como tal: um belo ser. Se o milionário adquire um Renoir, talvez queira mostrar ao mundo sua capacidade aquisitiva. Mas nenhum elogio de seus pares será tão compensador quanto ter em sua própria sala uma fração do espírito de um gênio da pintura, que de alguma forma estaria impregnando a identidade do proprietário atual.
A procura de identidade torna-se cada vez mais frenética, apressada e perigosa. Como os cães que farejam a fêmea no cio e não medem os perigos que a cercam, os buscadores de identidade raramente percebem as armadilhas em seu caminho.
Em cada peça publicitária há um apelo à identidade do provável consumidor. Os instrumentos de mídia põem-nos cada vez mais parecidos com algum modelo de pai, mãe, amante, milionário, esportista, artista, rebelde, inteligente, arrojado, independente, etc. Moderno é expressar o “ser” dentro dos padrões criados em algum escritório de publicidade de Nova York ou Paris. Se você não usa celular, se não tem página no Facebook, se não toma uma atitude “agressiva” perante o mercado “cada vez mais competitivo”, se não tem cartão de crédito, se não usa aquelas expressões americanas que nos tornam tão chiques e sofisticados, você está fora do cenário. Talvez livre para montar o seu próprio circo, tocar a sua própria música, criar os seus próprios conceit... não, por favor, não crie conceitos! É a palavra mais batida e surrada pela mídia. Como “qualidade de vida” — expressão permanente na boca dos bons e dos maus políticos — “conceito” é algo que não significa absolutamente nada.
Romper o “círculo do poder”, como dizia Dom Juan, de Castañeda, talvez seja a lição mais poderosa que qualquer indivíduo civilizado pode experimentar. Colocar-se em posição que possibilite essa ruptura é a atitude temerária. Mas chegar a esse ponto significa ter passado por uma série de circunstâncias reveladoras, um caminho de buscas que levam a uma explosão de luzes e dor. A dor de trocar de pele, ou tirar a tinta com que nos pintaram, segundo Fernando Pessoa, para descobrir a madeira de que somos feitos. Muitos letrados, mestres e até doutores jamais virão a saber o que seja essa “morte da cultura” para a descoberta da humanidade real. Permanecem citando autores renomados à beira da maçã, como a bela virgem que não teve a coragem de dar o primeiro bocado e abandonar o paraíso da ignorância.
Aqui por perto ouço muita gente falando em desgraças e catástrofes — apesar da magia dos celulares, da TV de plasma, dos conceitos e do design! Meus amigos intelectuais, vencidos pela Lei da Inércia, concluíram que todas as revoluções são inúteis, porque, mais dia menos dia, o sol há de se apagar e, com ele, todos os traços da nossa civilização. Mas continuo respirando o céu azul e dizendo “arco-íris”, “esperança”, “generosidade”. E ainda que os representantes dos deuses jamais tenham conseguido me laçar, e mesmo que eu não queira e não aceite uma vida mais longa que as cinco ou seis décadas a mim concedidas, pressinto nos ares as brisas de um futuro luminoso.
Se olharmos a flor, que rompe da escuridão para dar-se nuns poucos dias, tão plena, tão certa, e ser esquecida para sempre... a Humanidade que sou, que somos, um dia sairá destas profundezas, florescerá, e o sol que se apague, que o mundo nos esqueça... que tenhamos aberto esta possibilidade é maior que todas as negras premonições sobre a minha dor e a minha morte.
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