Não sei se vocês percebem, ou preferem não
pensar nisso, mas há alguma coisa errada aqui. Olhem à sua volta, pessoas de 35,
50, 60 anos, digam-me se reconhecem este mundo. O que há da nossa infância, dos
conhecimentos que recebemos, que sejam considerados agora? O mundo cresceu
assustadoramente nas últimas décadas, seguindo por um fio condutor que não
ensina humanidades, nem se importa com as dores e os fracassos. As cidades
transformam-se em estruturas de aço e cimento, a comunicação entre pessoas
converteu-se num torvelinho de informações alucinante. As brincadeiras das
ruas, cadê? Os jogos que inventávamos, por que desapareceram? Por que a verdade
tornou-se somente a verdade que nos vendem! Não podemos mais construí-la com as
próprias mãos? Não podemos inventar um novo jeito de ser, que não seja este
importado da América do Norte? Poucos estão atentos aos processos que dominam nossos
corpos, nossas mentes e nossas almas. Estão no dorso da onda, seguindo
apressadamente, rumo ao sucesso. Rumo a quê? As ondas se arrebentam diariamente
à porta de nossas casas, dizendo que precisamos reaprender a surfar. Mas já
aprendemos ontem, por que devemos hoje tornar a aprender? “Acontece que, de ontem
para hoje, o mundo mudou suas leis”, diz o vendedor. “Você precisa comprar este
novo aparelho, ou será deixado para trás”. As estruturas industriais são
gigantescas, os sistemas nos abraçam fragorosamente, somos arrastados por
inúmeras forças, dilacerados pelas flechas das certezas que nos acertam. Compre
o celular, compre o notebook, compre o novo programa, o novo aplicativo! Mas o
que queremos? Qual é a verdade que devemos construir? O que realmente importa,
neste pequeno intervalo temporal chamado Vida? Eu quero ter um carro, uma casa,
uma viagem, uma aventura alucinante, um conforto jamais provado, um prazer
inusitado, um romance visceral! Mas isso me acalma, me completa, ou somente me
enche de espaços ansiosos de preenchimento? Não será melhor que eu não tenha
nada? Que eu nada deseje e nada busque? No desconforto de todas essas vitrines
que me oferecem tudo, sim, o que me atrai agora é o nada. Nada de anseios, nada
de expectativas, nada da aflição medonha pela posse do mais e do melhor. Já
entreguei as minhas posses, desfiz-me da minha máquina mortífera, ando de
bicicleta, vivo de dádivas. Paro na calçada para apreciar o vento nos galhos
das árvores. Volto atrás sempre que vejo no muro um desenho que me atrai. Filtro
o ronco dos motores e deixo a música do mundo penetrar em minha alma. Bebo a
água como aquele tuaregue que atravessou um deserto sem trégua, aceito uma
folha de alface, uma lasca de pão, enquanto meu corpo prepara seu próximo
desaparecimento...
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