terça-feira, 7 de maio de 2013

A ESPONJA CAPITALISTA


Logo que voltei a Curitiba, após alguns anos no interior do Paraná derrubando reitores e prefeitos corruptos, pensei que estava num outro mundo. Nos barzinhos onde costumávamos falar de arte e revolução, onde tossíamos fumaça e vomitávamos nossa revolta contra todo tipo de pilantragem e autoritarismo, onde chegávamos de tênis e bermudas e saíamos sem camiseta, encontrei centenas de jovens de rostos saudáveis, trajados como artistas do cinema europeu, falando sobre os novos modelos de telefone sem fio, o secador de cabelos supersônico e o cortador de unhas digital!
Senti-me sem assunto, mesmo diante de alguns que já contavam décadas, como eu. Temerosos de se tornarem extemporâneos, falavam sobre o abridor de latas atômico, a camisinha de fibra ótica e o barbeador sem lâmina. Tive uma terrível sensação de irrealidade diante daquelas pessoas felizes. O cheiro de esgoto nas ruas do centro, aquelas crianças caídas nas canaletas dos ônibus, as centenas de catadores de papel, que limpavam a cidade e não recebiam um centavo da prefeitura... isso só podia ser ilusão de ótica, numa cidade que se autodenominava “Capital Social”.
Entrei em crise. Eu queria ter nascido em Governador Valadares e viver de poesia, não de dinheiro. Quando acendiam as luzes para mostrar as peças, as cores, as letras, os lábios dos manequins, as nossas velhas canções do coração transformadas em jingles de produtos, eu não via, nem ouvia nada, pensando que meus olhos e ouvidos pertenciam a outros domínios.
Eu levava todo dia minha garota para passear de roller no parque do Atlético. Depois das manobras e os tombos de sempre, íamos ao velhinho da esquina tomar um suco de cana. Olhando a Parati quase nova do vendedor, cheguei a fazer planos para compor minha própria moenda de cana. Precisava garantir o pão da família e o aluguel da casa, mas como fazê-lo num mundo tão irreal? Consultei as cartas, os astros, as pedras, os copos de uísque, mas nada me respondeu. Consultando o velho filósofo que tem uma banquinha de revistas aqui perto de casa, percebi que as minhas premissas estavam equivocadas. Eu não era livre como pensava.
Estou limitado ao espaço da minha própria história, concluí. Ainda que tenha alcançado, desde cedo, algumas vitórias contra as determinações culturais (andando de chinelo quando todos usavam Samello), contra o status familiar (passeando com a Larissa quando meu pai me mandava ir à missa), não posso negar que sempre fui produto da minha época.
Embora tenha usado pulseiras, colares e brim Coringa, e ainda que tenha cantado Geraldo Vandré e Raul Seixas na praça da cidade para mostrar que um outro mundo era possível — dezenas de anos antes do I Fórum Social Mundial — meu comportamento já estava previsto pelo mercado.
Uma fatia da produção mundial sempre foi destinada aos que querem destruir o capitalismo. Sentindo a natureza revolucionária dos jovens, o mercado criou um sem-número de produtos que cumprem duas funções essenciais para a manutenção do sistema: apaziguam os hormônios da revolta e dão retorno financeiro. O capitalismo é um ser oceânico, esponja que absorve tudo, e vai ficando cada vez mais gordo e imexível.
Num supermercado eu seria um daqueles produtos de fundo de prateleira, com um nome estranho, pintado fora das regras do design moderno, algo que poucos arriscariam a levar para casa, porque nunca ouviram falar, nada tão certo e claro como um pacote de arroz. No entanto, o produto está ali, faz parte do conjunto, está determinado e registrado com código de barras: “Gengibre das Filipinas”.
A possibilidade de estar fora do mercado existe, desde que o sujeito aceite a condição de “produto invendável”. Viverá pobre e desnutrido, mas terá grandes chances de construir uma consciência singular, se é que isso vale alguma coisa nos dias que correm.

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