Logo que voltei a Curitiba, após alguns anos no interior do Paraná derrubando reitores e prefeitos corruptos, pensei que estava num outro mundo. Nos barzinhos onde costumávamos falar de arte e revolução, onde tossíamos fumaça e vomitávamos nossa revolta contra todo tipo de pilantragem e autoritarismo, onde chegávamos de tênis e bermudas e saíamos sem camiseta, encontrei centenas de jovens de rostos saudáveis, trajados como artistas do cinema europeu, falando sobre os novos modelos de telefone sem fio, o secador de cabelos supersônico e o cortador de unhas digital!
Senti-me sem assunto, mesmo diante de alguns que já contavam décadas,
como eu. Temerosos de se tornarem extemporâneos, falavam sobre o abridor de
latas atômico, a camisinha de fibra ótica e o barbeador sem lâmina. Tive uma
terrível sensação de irrealidade diante daquelas pessoas felizes. O cheiro de
esgoto nas ruas do centro, aquelas crianças caídas nas canaletas dos ônibus, as
centenas de catadores de papel, que limpavam a cidade e não recebiam um centavo
da prefeitura... isso só podia ser ilusão de ótica, numa cidade que se
autodenominava “Capital Social”.
Entrei em crise. Eu queria ter nascido em Governador Valadares e viver
de poesia, não de dinheiro. Quando acendiam as luzes para mostrar as peças, as
cores, as letras, os lábios dos manequins, as nossas velhas canções do coração
transformadas em jingles de produtos, eu não via, nem ouvia nada, pensando que
meus olhos e ouvidos pertenciam a outros domínios.
Eu levava todo dia minha garota para passear de roller no parque do
Atlético. Depois das manobras e os tombos de sempre, íamos ao velhinho da
esquina tomar um suco de cana. Olhando a Parati quase nova do vendedor, cheguei
a fazer planos para compor minha própria moenda de cana. Precisava garantir o
pão da família e o aluguel da casa, mas como fazê-lo num mundo tão irreal?
Consultei as cartas, os astros, as pedras, os copos de uísque, mas nada me
respondeu. Consultando o velho filósofo que tem uma banquinha de revistas aqui
perto de casa, percebi que as minhas premissas estavam equivocadas. Eu não era
livre como pensava.
Estou limitado ao espaço da minha própria história, concluí. Ainda que
tenha alcançado, desde cedo, algumas vitórias contra as determinações culturais
(andando de chinelo quando todos usavam Samello), contra o status familiar
(passeando com a Larissa quando meu pai me mandava ir à missa), não posso negar
que sempre fui produto da minha época.
Embora tenha usado pulseiras, colares e brim Coringa, e ainda que tenha
cantado Geraldo Vandré e Raul Seixas na praça da cidade para mostrar que um
outro mundo era possível — dezenas de anos antes do I Fórum Social Mundial —
meu comportamento já estava previsto pelo mercado.
Uma fatia da produção mundial sempre foi destinada aos que querem
destruir o capitalismo. Sentindo a natureza revolucionária dos jovens, o
mercado criou um sem-número de produtos que cumprem duas funções essenciais
para a manutenção do sistema: apaziguam os hormônios da revolta e dão retorno
financeiro. O capitalismo é um ser oceânico, esponja que absorve tudo, e vai
ficando cada vez mais gordo e imexível.
Num supermercado eu seria um daqueles produtos de fundo de prateleira,
com um nome estranho, pintado fora das regras do design moderno, algo que
poucos arriscariam a levar para casa, porque nunca ouviram falar, nada tão
certo e claro como um pacote de arroz. No entanto, o produto está ali, faz
parte do conjunto, está determinado e registrado com código de barras:
“Gengibre das Filipinas”.
A possibilidade de estar fora do
mercado existe, desde que o sujeito aceite a condição de “produto invendável”.
Viverá pobre e desnutrido, mas terá grandes chances de construir uma
consciência singular, se é que isso vale alguma coisa nos dias que correm.
Nenhum comentário:
Postar um comentário