sexta-feira, 17 de maio de 2013

ABISMO DE ROSAS


Nossa turma do Ginásio Alberto de Carvalho andava muito mal de notas, naquele final de 8ª Série. Estudar era uma atividade que não estava em nossos planos. Tínhamos coisas mais importantes a fazer, como pensar em namoradas e tocar violão. Mas também não queríamos reprovar. Restava apelar para o lado emotivo dos professores. Mas como fazer isso sem parecermos falsos ou inconvenientes?
A idéia da serenata veio do Frank, o eterno aluno do Ginásio. Entrava ano, saía ano, lá estava ele, sempre organizando seus times para o próximo campeonato. Em outubro de 1978 Frank reuniu nossa turma de dependurados e, cada um com um violão debaixo do braço, conduziu-nos madrugada adentro. Fomos animados pelas ruas, prevendo as delícias da noite.

Na metade do ano havia surgido no Ginásio o João Gregório Bohatczuk, o melhor violonista que Prudentópolis já conheceu. Aos quatorze anos ele interpretava com maestria peças de Bach, Villa Lobos, Beethoven e Segovia. Até o Hino Nacional Gregório tocava.
Durante suas aulas de inglês, o diretor Ari de França Camargo, também violonista, abria um espaço de dez minutos para que nosso colega mostrasse sua arte. Gregório então nos dava aqueles momentos sublimes, mostrando Tristesse ou Sonata ao Luar com as notas puras de seu Di Giorgio, recompensando o nobre gesto do professor.
Além do violão, nosso músico tinha grande intimidade com a guitarra, o violino, a gaita e o piano. Mas esses instrumentos, só uns poucos privilegiados tiveram a oportunidade de vê-lo tocar.
Ameaçado de reprovação num colégio de Guarapuava, sua cidade natal, devido à dedicação quase exclusiva à atividade musical, Gregório aceitou de bom grado a oferta do tio, professor de matemática do Alberto de Carvalho: a garantia de que ele passaria de ano.
Logo que começou a mostrar seus dotes, Gregório foi festejado como um verdadeiro gênio em nossa cidade. Além de música, tinha conhecimentos de eletrônica, química e física, matérias que para nós eram coisas do outro mundo. Corria a notícia de que ele havia montado seu próprio receptor de rádio, o que vinha confirmar definitivamente sua genialidade. Todo mundo estava na sua cola, inclusive o Frank.

Gregório era o nosso grande trunfo, naquela noite da primeira serenata. Começamos pelo César Barros, professor de Técnicas Agrícolas, que nos ensinava a plantar cenouras e outros vegetais, os quais, infelizmente, não vingavam, talvez por falta de técnica, ou de adubo.  Acomodamo-nos sob a janela do quarto de Barros e Gregório disparou a famosa e doce “Abismo de Rosas”, de Dilermando Reis. Enquanto as notas dançavam no silêncio da noite, nós fingíamos acompanhá-lo, postados ao seu lado como legítimos mariachis.
Após a primeira canção, o professor abriu a janela, com os olhos estalados.
— Meu Deus do Céu, piazada. O que foi que vocês me aprontaram!? — exclamou, e logo nos recolheu à sua sala. Serviu bolacha, crush, fanta, gasosão e tudo de bom que tinha na geladeira. Enquanto nos deliciávamos, o operário da música debulhava os dedos frenéticos sobre as notas vibrantes de Sons de Carrilhões. A cada final de música Barros pedia mais uma, mais uma, mal dando fôlego para Gregório engolir um gole de refrigerante.
Animados com essa acolhida, fomos à casa do Doutor Moacir de Moura Cordeiro. Era o mais adorado professor do Ginásio, mestre que tanta ventura trouxe para a nossa geração, apresentando com gestos teatrais bem calculados as histórias do Brasil e do mundo.
Para nossa surpresa, a esposa do professor, Dona Aura, havia preparado um pequeno banquete para nos recepcionar: bolo de pêssego e refrigerantes. De algum modo a notícia da serenata vazara, e o casal estava aguardando os seresteiros.
Já dentro da sala, acomodados em poltronas muito confortáveis, os notívagos estavam pasmos com o que viam: quadros e estatuetas que costumávamos encontrar somente em filmes e revistas. A cultura do mundo todo estava ali, guardada em traços, cores e formas bem modeladas. Porém, mais que nas paredes e nas estantes, uma cultura soberba guardava-se na memória dos visitados.
— Vamos, vamos, meninos — dizia Aura. — Comam. Compramos esse bolo e os refrigerantes para vocês! Vocês merecem! Que coisa bonita que vocês estão fazendo!
Educados como eram, os garotos aceitaram o oferecimento dos anfitriões, devoraram o bolo, enquanto Gregório distribuía pela casa seus melhores acordes.

A noite foi longa, um delírio sem fim. Os resultados colhidos nos boletins seriam uma grande recompensa, mas nada que se igualasse à emoção vivida naquela madrugada, repartida generosamente entre alunos e professores.

O tempo das serenatas é inesquecível para nós, maiores de 40. Talvez porque naqueles anos vimos aflorar um sentimento de grandeza que jamais conseguiríamos recuperar.
Muitas das nossas homenageadas não eram bonitas, e algumas delas sequer chegavam a ser charmosas, mas para os seresteiros isso tinha pouca importância. O que valia para aquela turma de garotos era respirar o ar fresco da madrugada, fazer mil planos para chegar na hora certa, e não dar o vexame de cantar sob a janela do pai da moça. Como de fato aconteceu, numa certa Sexta-Feira Santa!
Não lembro por que cargas d’água resolvemos surpreender nossa amiga Laura naquela noite. Talvez se pesquisarmos fundo em nossos corações, descobriremos o que ninguém admitia: todos queriam namorá-la. Postamo-nos debaixo de sua janela e desatamos a voz. Chegávamos ao meio da primeira música quando a luz do quarto acendeu. Esse era o melhor momento da noite: o aguardo do sorriso da musa. A janela começou a abrir. Empolgados, aumentamos o volume e continuamos a cantar, na certeza de que por trás da janela Laura usufruía todo o fervor de nossas paixões. Ao findar a melodia, abriram-se lado a lado as venezianas e um volume grande assomou à luz da janela. Era o pai da moça, que vinha mostrar sua autoridade. Sentou-se, cruzou os braços e ficou olhando-nos, no silêncio mortal que se instalara na madrugada. Quietos como a caça sob o holofote do caçador, depois de um instante de hesitação arriamos os instrumentos e demos no pinote.

Seresteiro que é bom fez pelo menos uma serenata para as internas do Imaculada Virgem Maria. Para nós, o colégio era parada obrigatória. Dezenas de adolescentes maravilhosas ouviriam nosso canto, e não podíamos deixá-las sem esse privilégio — embora alguns de nossos vocalistas fossem irremediavelmente desafinados. Infelizmente, elas não podiam abrir as janelas, mas de quando em quando a gente percebia uma piscadinha de luz. Era o que nos bastava. E de repente, enquanto nosso amigo Gregório cantava a imortal “Michelle”, dos Beatles, começaram a cair rosas sobre nós!
Ficamos embevecidos. Era um presente dos céus. Algum anjo benfazejo vinha realizar o sonho de receber daquelas que nos ouviam um carinhoso sinal, um gesto singelo a nos dizer que estavam gostando, e que naquela noite de sábado éramos nós os seus príncipes, seus escolhidos. Sentindo a chuva de flores, que vinha não sabíamos de onde e esfarelava sobre nossos cabelos úmidos de névoa, aumentamos o volume e cantamos como nunca, ardentes de felicidade e paixão.
Ao sairmos do jardim, com os pêlos dos braços ainda arrepiados de emoção e triunfo, notamos dois de nossos companheiros afastando-se para a calçada do outro lado da rua e rindo-se, descontrolados. Pressionados, confessaram que haviam-se escondido detrás dos arbustos, e enquanto cantávamos atiravam as rosas, colhidas das roseiras do Imaculada. As internas, em seu refúgio, espiavam-nos ansiosas por trás das cortinas.

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