Nossa turma do Ginásio Alberto de Carvalho andava
muito mal de notas, naquele final de 8ª Série. Estudar era uma atividade que
não estava em nossos planos. Tínhamos coisas mais importantes a fazer, como
pensar em namoradas e tocar violão. Mas também não queríamos reprovar. Restava
apelar para o lado emotivo dos professores. Mas como fazer isso sem parecermos
falsos ou inconvenientes?
A idéia da
serenata veio do Frank, o eterno aluno do Ginásio. Entrava ano, saía ano, lá
estava ele, sempre organizando seus times para o próximo campeonato. Em outubro
de 1978 Frank reuniu nossa turma de dependurados e, cada um com um
violão debaixo do braço, conduziu-nos madrugada adentro. Fomos animados pelas
ruas, prevendo as delícias da noite.
Na metade do ano havia
surgido no Ginásio o João Gregório Bohatczuk, o melhor violonista que
Prudentópolis já conheceu. Aos quatorze anos ele interpretava com maestria
peças de Bach, Villa Lobos, Beethoven e Segovia. Até o Hino Nacional Gregório
tocava.
Durante suas aulas
de inglês, o diretor Ari de França Camargo, também violonista, abria um espaço
de dez minutos para que nosso colega mostrasse sua arte. Gregório então nos
dava aqueles momentos sublimes, mostrando Tristesse ou Sonata ao Luar com as
notas puras de seu Di Giorgio, recompensando o nobre gesto do professor.
Além do violão,
nosso músico tinha grande intimidade com a guitarra, o violino, a gaita e o
piano. Mas esses instrumentos, só uns poucos privilegiados tiveram a
oportunidade de vê-lo tocar.
Ameaçado de
reprovação num colégio de Guarapuava, sua cidade natal, devido à dedicação
quase exclusiva à atividade musical, Gregório aceitou de bom grado a oferta do
tio, professor de matemática do Alberto de Carvalho: a garantia de que ele
passaria de ano.
Logo que começou a
mostrar seus dotes, Gregório foi festejado como um verdadeiro gênio em nossa
cidade. Além de música, tinha conhecimentos de eletrônica, química e física, matérias
que para nós eram coisas do outro mundo. Corria a notícia de que ele havia
montado seu próprio receptor de rádio, o que vinha confirmar definitivamente
sua genialidade. Todo mundo estava na sua cola, inclusive o Frank.
Gregório era o nosso grande trunfo, naquela noite da
primeira serenata. Começamos pelo César Barros, professor de Técnicas
Agrícolas, que nos ensinava a plantar cenouras e outros vegetais, os quais,
infelizmente, não vingavam, talvez por falta de técnica, ou de adubo. Acomodamo-nos sob a janela do quarto de
Barros e Gregório disparou a famosa e doce “Abismo de Rosas”, de Dilermando
Reis. Enquanto as notas dançavam no silêncio da noite, nós fingíamos
acompanhá-lo, postados ao seu lado como legítimos mariachis.
Após a primeira canção, o professor abriu a janela,
com os olhos estalados.
— Meu Deus do Céu, piazada. O que foi que vocês me
aprontaram!? — exclamou, e logo nos recolheu à sua sala. Serviu bolacha, crush,
fanta, gasosão e tudo de bom que tinha na geladeira. Enquanto nos deliciávamos,
o operário da música debulhava os dedos frenéticos sobre as notas vibrantes de
Sons de Carrilhões. A cada final de música Barros pedia mais uma, mais uma, mal
dando fôlego para Gregório engolir um gole de refrigerante.
Animados com essa acolhida, fomos à casa do Doutor
Moacir de Moura Cordeiro. Era o mais adorado professor do Ginásio, mestre que
tanta ventura trouxe para a nossa geração, apresentando com gestos teatrais bem
calculados as histórias do Brasil e do mundo.
Para nossa surpresa, a esposa do professor, Dona Aura,
havia preparado um pequeno banquete para nos recepcionar: bolo de pêssego e
refrigerantes. De algum modo a notícia da serenata vazara, e o casal estava
aguardando os seresteiros.
Já dentro da sala, acomodados em poltronas muito
confortáveis, os notívagos estavam pasmos com o que viam: quadros e estatuetas
que costumávamos encontrar somente em filmes e revistas. A cultura do mundo
todo estava ali, guardada em traços, cores e formas bem modeladas. Porém, mais
que nas paredes e nas estantes, uma cultura soberba guardava-se na memória dos
visitados.
— Vamos, vamos, meninos — dizia Aura. — Comam.
Compramos esse bolo e os refrigerantes para vocês! Vocês merecem! Que coisa
bonita que vocês estão fazendo!
Educados como eram, os garotos aceitaram o oferecimento
dos anfitriões, devoraram o bolo, enquanto Gregório distribuía pela casa seus
melhores acordes.
A noite foi longa, um delírio sem fim. Os resultados
colhidos nos boletins seriam uma grande recompensa, mas nada que se igualasse à
emoção vivida naquela madrugada, repartida generosamente entre alunos e
professores.
O tempo das serenatas é inesquecível para
nós, maiores de 40. Talvez porque naqueles anos vimos aflorar um sentimento de
grandeza que jamais conseguiríamos recuperar.
Muitas das nossas homenageadas não eram
bonitas, e algumas delas sequer chegavam a ser charmosas, mas para os
seresteiros isso tinha pouca importância. O que valia para aquela turma de
garotos era respirar o ar fresco da madrugada, fazer mil planos para chegar na
hora certa, e não dar o vexame de cantar sob a janela do pai da moça. Como de
fato aconteceu, numa certa Sexta-Feira Santa!
Não lembro por que cargas d’água resolvemos
surpreender nossa amiga Laura naquela noite. Talvez se pesquisarmos fundo em
nossos corações, descobriremos o que ninguém admitia: todos queriam namorá-la.
Postamo-nos debaixo de sua janela e desatamos a voz. Chegávamos ao meio da
primeira música quando a luz do quarto acendeu. Esse era o melhor momento da
noite: o aguardo do sorriso da musa. A janela começou a abrir. Empolgados,
aumentamos o volume e continuamos a cantar, na certeza de que por trás da
janela Laura usufruía todo o fervor de nossas paixões. Ao findar a melodia,
abriram-se lado a lado as venezianas e um volume grande assomou à luz da
janela. Era o pai da moça, que vinha mostrar sua autoridade. Sentou-se, cruzou
os braços e ficou olhando-nos, no silêncio mortal que se instalara na
madrugada. Quietos como a caça sob o holofote do caçador, depois de um instante
de hesitação arriamos os instrumentos e demos no pinote.
Seresteiro que é bom fez pelo menos uma
serenata para as internas do Imaculada Virgem Maria. Para nós, o colégio era
parada obrigatória. Dezenas de adolescentes maravilhosas ouviriam nosso canto,
e não podíamos deixá-las sem esse privilégio — embora alguns de nossos
vocalistas fossem irremediavelmente desafinados. Infelizmente, elas não podiam
abrir as janelas, mas de quando em quando a gente percebia uma piscadinha de
luz. Era o que nos bastava. E de repente, enquanto nosso amigo Gregório cantava
a imortal “Michelle”, dos Beatles, começaram a cair rosas sobre nós!
Ficamos embevecidos. Era um presente dos
céus. Algum anjo benfazejo vinha realizar o sonho de receber daquelas que nos
ouviam um carinhoso sinal, um gesto singelo a nos dizer que estavam gostando, e
que naquela noite de sábado éramos nós os seus príncipes, seus escolhidos.
Sentindo a chuva de flores, que vinha não sabíamos de onde e esfarelava sobre
nossos cabelos úmidos de névoa, aumentamos o volume e cantamos como nunca, ardentes
de felicidade e paixão.
Ao sairmos do jardim, com os pêlos dos braços ainda
arrepiados de emoção e triunfo, notamos dois de nossos companheiros
afastando-se para a calçada do outro lado da rua e rindo-se, descontrolados.
Pressionados, confessaram que haviam-se escondido detrás dos arbustos, e
enquanto cantávamos atiravam as rosas, colhidas das roseiras do Imaculada. As
internas, em seu refúgio, espiavam-nos ansiosas por trás das cortinas.
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