sábado, 4 de maio de 2013

A INFLUÊNCIA DAS SUPERFÍCIES LISAS NA VIDA DOS BESOUROS

Deus não havia concebido superfícies lisas que não fossem os espelhos d’água, ou pequenas áreas como a casca da maçã ou o tronco da cerejeira, quando inventou o besouro. Muitos fazem chacota do infeliz, insinuando que ele contraria as leis da aerodinâmica, etc, mas o fato é que o animal é perfeito, sem nada para modificar ou acrescentar, e tem lá sua razão para ser o que é, como a têm, aliás, todos os seres da Terra. Infelizmente, o besouro não se adaptou às superfícies lisas criadas pelo homem, o que lhe causa maiores incômodos que as paredes onde ele se choca a cada momento. A carapaça dura protege contra as porradas, mas as superfícies lisas das calçadas, das ruas e dos assoalhos, significam a morte.
Na floresta, mesmo caindo de uma altura considerável, sobrevivendo ao impacto e ficando de barriga para cima, o besouro se vira daqui, dali, estica uma perna e logo consegue enroscar suas garras especiais num fiapo de grama, folha de árvore, cipó, pedra, retornando à posição normal. As superfícies irregulares não deixam perceber que o besouro, além de um péssimo voador, é um desastroso andador. Numa superfície lisa, ao lançar um passo é capaz de se desequilibrar e rolar novamente para a posição de costas, que não lhe permite qualquer ação, exceto aquele nervoso lançar de pernas para todos os lados sem qualquer efeito. Ao longo das horas, o bicho vai cansando, tornando as passadas mais lentas, até que finalmente desiste e dorme, à espera do fim.
No último verão, enquanto revirava os besouros da minha garagem (eram 22 ao todo), fiquei pensando se teria de me ocupar com isso todos os dias de agora em diante. Além de virá-los todos, teria de ficar torcendo para que, ao caminhar na direção da saída (se eles conseguissem adivinhar onde era) não voltassem à “posição de parto”. Teria de esperá-los todos alçarem vôo, mas estavam praticamente mortos de cansaço pelos esforços da noite anterior (socando a vidraça, tentando entrar na sala iluminada). Decidi então apanhar a vassoura e varrê-los direto para a grama. Deu certo! Logo que entraram em contato com as superfícies irregulares, mesmo os que ficaram de lado ou de costas, logo se viraram, começaram a andar para as mais diversas direções e foram cuidar da vida.

O ser humano não se cansa de criar dificuldades para as outras espécies. Esse orgulhoso senhor super-criativo, elegante pós-moderno, não faz idéia de quão infeliz, minúscula e estéril é a sua obra terrena. Construções de Gaudi, shows de Led Zeppelin, filmes de Spielberg, museus, casas antigas restauradas! Que coisas grandiosas, mas a Natureza continua costurando os guaçatungas com cipós de jasmins, estruturando recantos de árvores gigantescas enfeitadas com espécies minúsculas, microscópicos seres absolutamente integrados na vida e na morte dizendo “sim!”, o show não acaba às cinco da madrugada, com uma puta dor de cabeça e a garganta ardendo cigarro. O show é perene, luminoso, eterno, desde sempre aberto com entrada franca (pois todos já estão dentro, aliás, nós somos o dentro), com apresentações ininterruptas em todos os espaços do planeta. Mesmo no corpo de Billy Joel cantando Piano Man, um bando de seres vivos se multiplica e renova a flora intestinal perdida na última dose de uísque, formando maravilhosos fractais.

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