quarta-feira, 15 de maio de 2013

O CABELO LISO E BEM-CORTADO DO PAULINHO

 
Logo que viemos morar na cidade, minha irmã Elisabeth Taylor apanhou-me pelo braço e me conduziu à Escola de Aplicação Coronel José Durski, onde eu deveria cursar o 2º Ano Primário. John Lennon acabara de dizer que “o sonho acabou”, e estávamos em plena ditadura militar. Porém, aos olhos das crianças, a vida florescia, o sol nascia para todos e a chuva regava todas as hortas.
A Liz namorava o Elvis Presley, que, segundo ela, era um rapaz refinado e culto, pois cantava na igreja e havia feito cursilho! Naquela época, os praticantes do cursilho eram celebrados como verdadeiros santos. Mas os anos mostrariam que o bom caráter e a boa índole vêm mais do empenho e da natureza de cada um que dos certificados conseguidos em certas instâncias religiosas. As “aprontadas” do Elvis nos meses seguintes deixariam a Liz com o queixo no chão — mas creio que ela não gostaria que eu comentasse isso em público, então, vamos adiante.
No caminho para a escola, minha irmã foi falando de um garoto chamado Paul McCartney, o Paulinho, um rapaz muito educado e inteligente, irmão mais novo do Elvis. Com oito anos ele já tocava piano!
— Ele vai ser teu amigo — ela disse. Eu nem sabia direito o que significava essa palavra, “amigo”, e fazia uma vaga idéia do que seria um  “piano”. Mas desde o primeiro dia de aula fiquei observando o Paulinho, esperando que ele se manifestasse e eu finalmente viesse a saber o que era um amigo.
A Tia Diva, nossa professora, era um doce. Inteligente e simpática, toda aula trazia um enigma para desvendarmos, aguçando nossa criatividade e despertando nosso desejo de conhecimento. Mas os meus colegas eram bem esquisitos. Corriam e gritavam o tempo todo. A sorte foi ter-me apaixonado imediatamente pela Lilibety, irmã caçula da Marilyn Monroe, uma graça de menina, que não me deixou ficar pensando nas esquisitices dos meus companheiros. Enquanto eles se divertiam jogando bafo e bola de gude, eu ficava observando minha princesa em suas brincadeiras, totalmente absorvido pelo tom avermelhado de seus lábios, que não paravam nunca de mexer.
Por razões que não cabe a mim explicar — talvez cabe ao tempo, ao destino, a Deus ou a qualquer entidade que tenha poder sobre o mistério da vida inocente — fui firmando uma boa amizade com o Gilberto Gil, vulgo Beto, o sujeito mais encrenqueiro e mal-educado da turma. Morava na periferia — a cinco quadras do centro, lá pelos lados da Vila Nova, se não me falha a memória. Toda semana me convidava a fugir da aula para caçarmos passarinhos. Como resultado, já no primeiro bimestre o Beto e eu fomos os únicos da classe a tirar nota “regular” nas provas.
Até hoje tenho dificuldade em encarar o R como boa letra, talvez devido àquele R enorme que a Tia Diva escreveu em minha prova. Era muito estranha essa palavra. Regular! Nunca tive coragem de perguntar seu significado, como também jamais entendi. Hoje, pensando em termos etimológicos, quero crer que regular é um sujeito que regula bem, que é fiel às regras, que vive dentro da normalidade. Entretanto, acima da nota regular existia a nota bom e a nota excelente. Portanto, eu e o Beto, apesar de sermos regulares, de estarmos dentro das regras da escola, não éramos bons, tampouco excelentes.
Quanto ao Paulinho, em seu pedestal de inteligência e boa-educação, o cabelinho liso sempre bem-cortado, as calças sempre na medida e os sapatos encerados, o Paulinho brilhava. Mas para mim, jamais significou algo especial. Ouvi falar que hoje é engenheiro químico, e isso continua não significando nada para mim. Quanto à Lilibety, jamais consegui trocar uma única palavra com ela, nem jamais tentei.

Nenhum comentário: