quinta-feira, 2 de maio de 2013

EU NÃO QUERIA SER VOCÊ

Mano era um atleta, daqueles sujeitos saudáveis que sabem saborear a vida, sempre acompanhado de belas garotas, distribuidor de sorrisos e abraços. Estudou comigo durante alguns anos, antes de ser reprovado.
Parece que esse fato não teve grande repercussão na vida do moço. Ele levou a vida que quis, sem nunca se importar com o fato de que o quadrado da hipotenusa era igual à soma dos quadrados dos catetos. Nunca leu Machado de Assis, nem ficou sabendo que os filósofos iluministas foram os faróis da Revolução. Porém, andava pelas ruas com garbo, sem se magoar com os olhares invejosos que o admiravam.
Creio ser uma atitude adulta dizer que eu era um desses invejosos. Enquanto eu lutava para desvendar os segredos do triângulo e seus áridos catetos, Mano se expandia nas quadras de basquete, fazendo rodopios em torno da grande bola laranja e tirando suspiros da platéia. Enquanto me perdia em dúvidas, tentando compreender as peripécias de Bentinho e Capitu, Mano passava pela avenida agarrado com meia dúzia daquelas mulheres fúteis a quem nunca tive coragem de dirigir a palavra, mas em cujo colo bem que eu gostaria de dormir.
A escola havia condenado o Mano, dizendo que ele não prestava para a vida, mas ele não se deu conta disso e continuou vivendo, com toda a força de sua jovem libido.
A vida e a felicidade, para mim, estavam no fundo incompreensível das histórias de romance, ou num daqueles vãos entre as estrelas, nas noites solitárias da minha adolescência. Certa vez, Mano revelou-me, muito de súbito: “Dizem que você é muito inteligente. Mas eu não queria ser você”. Não consegui odiá-lo por isso, talvez porque ele expressou exatamente o que eu pensava de mim mesmo. Eu também não queria ser eu. Queria ser um cara livre, desprendido, falador, esportista e brincalhão. Mas aos 16 anos tudo que eu conseguia fazer era ler um monte de livros, o que me permitia tirar boas notas na escola e manter discussões acaloradas com os professores. Quando me olhava no espelho, via somente a imagem de um completo fracasso.
À moda de James Dean, Mano teve a vida interrompida antes de alcançar a “idade da razão”. Morreu, como cabia a um playboy, num acidente com um Corcel II turbinado. Quando eu soube da notícia, a frase novamente bateu forte em minhas têmporas: “Eu não queria ser você”. E eu certamente trocaria meus anos vindouros por sua morte venturosa, se me fosse dado trocar de memória e recordar-me de mim mesmo, por um instante, como um sujeito que sorveu da vida seus melhores sabores.
Admito que nos últimos anos aprendi a desfrutar os prazeres desta vida - quando estão ao meu alcance. Mas não tenho dúvidas de que meu colega de infância “deu certo na vida” naquilo que ela tinha de melhor. Posso criar todo tipo de metafísica para comprovar a validade de estar no mundo como ser pensante, algo maior e melhor elaborado que um mero gozador - no sentido de “gozo”, de sentir prazer físico. Mas estaria mentindo se dissesse que acredito nisso. Quando a escola reprovou o Mano por sua incapacidade de entreter-se com as abstrações da trigonometria, da literatura e da filosofia, deu a si mesma um atestado de burrice.
Quando um professor sente a comichão de reprovar um aluno, precisa antes se perguntar se esse garoto é capaz de olhar as coisas ao seu redor e fazer um diagnóstico razoável de sua realidade; se é capaz de perceber a si mesmo dentro do seu contexto, com todas as suas possibilidades e limitações. E não se espere que ele saiba traduzir isso em letras. A escrita não é testemunho de aprendizado em disciplinas que tratam do prazer, ou do sentimento de plenitude, que tantos selvagens já usufruíram! Expressar-se em letras é dom que poucos cultivam, e nem por isso o resto da humanidade merece reprovação.
A cultura humana é um extrato mínimo de toda a sabedoria contida no universo. Quando sujeitos como o Mano resolvem suas questões e fazem a vida acontecer de um modo fácil, descomplicado e prazeroso, não se trata necessariamente de um fato cultural, exceto depois que o cronista cdf decide digitalizar a ocorrência.
Um equívoco do mesmo quilate era cometido pelo professor de educação física da época. Ansioso por transformar em campeões seus pupilos prediletos (e um desses era o Mano), ignorava completamente aqueles atletas toscos (dentre os quais me enquadrava), que pouco sabiam sobre as idiossincrasias da bola.

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